Páginas

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Mirtilo







Tecido de sons  doce-ácidos
Roxo como mãos doridas 
Nobre de  céus tempestuosos
Bosque selvagem onde amanhecem 
Os corpos dos amantes - ar puro
De ávidos olhos à flor do dia
Pensamentos navegando rio acima
Até à fresca  nascente
Vive-nos 
Como se abríssemos os olhos
Sem os tentar fechar
Leva-nos 
Como castelos onde  brotam  viçosos
Árduos corações abraçando o destino
Inelutável no festim da vida

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

em cada manhã


revejo os sonhos
se pesadelos só sonhos
se momentos de felicidade
apenas interrompidos
por pausas de reflexão circunstancial
realidade
onde há uma verdade 
subdividida 
em muitas 
reunidas eclodem 
numa verdade maior
como o calor das brasas
da lenha consumida
que se transforma em cinza 
muito macia e leve 
desvanece tudo o que é
verdade toda estranha
realidade cinzenta
se só pode ser cinza
ao menos que seja cinza feliz.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

ficção

Tudo no mundo é ficção, sustento ou fundamento dela. Nada existe para além disto. Palavra, pensamento, imagem, sonho, perceção. Quando fecho os olhos nenhuma imagem mais existe para além de tudo o que apanhei na minha rede. Sou sem querer, um pescador incansável, pesco incessantemente e tal como qualquer pescador, passo a maior parte do meu tempo a remendar as redes. Posso parecer idealista, mas a realidade só o é a partir do momento em que há sentido, sonho ou pensamento. A música que oiço é uma ressonância de todas as músicas que já escutei e por isso me leva a um estado de emergência existencial. O que é válido para a música é válido para os seres vivos, animais ou vegetais, para as pessoas em todas as suas idiossincrasias, para todos os livros que li ou debiquei, para todas as paisagens, temperaturas e sensações que já experimentei. Toda a imensa realidade que me rodeia e me atravessa, na maior parte do tempo sem eu dar por isso, me impele para o sonho e para a vigília, sempre aí remendando a rede, que com o tempo se vai rasgando, consoante os peixes que por lá passam e as águas mais doces ou mais salgadas, mais calmas ou mais revoltas, mais puras ou impuras que a atravessam. A inexorável intromissão de outros pescadores com outras redes no meu ser de pescador e no meu ser de rede, muitas vezes emaranhada, é o sentido da vida. Este combate permanente de peixe em águas salobras é o limpa-para-brisas da consciência, é a barreira entre mim e o mundo que se oferece para ser perfurada e se aproximar estruturalmente de uma malha tecida que deixa passar uns peixes e não outros e ao mesmo tempo se mantém viva, ainda que em metamorfose, porque só assim pode ser rede sem o parecer e enganar o enganador. Qual o peixe que mais se realiza enquanto peixe? Aquele que é apanhado pelas malhas da rede ou o que, incauto, toma o anzol por alimento? Como responder a estas perguntas sem deixar de ser pescador? Peixe uma vez, peixe para sempre. Com certeza será bem melhor ser peixe no mar bem alto, lá longe das redes e dos anzóis, onde o sol se põe, no horizonte do fim do mundo onde não há terra, só mar e mar. Lá a vida sorri porque o sorriso da vida é o sorrir dos outros peixes que nadam nas mesmas águas, sendo que alguns, não se contentando só em nadar, também querem voar e se fazem voadores, por isso podem ser comidos pelas aves piscívoras. E aí, santo deus, como se a natureza das coisas não estivesse bem, desenvolve-se a nação dos peixes como se homens fossem. Então talvez valha mais ser apenas um simples pescador do que peixe que não se contenta em ser um vivente das águas.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

SONHO



Irises-Vincent van Gogh.jpg

Vincent van Gogh, maio 1889
óleo sobre tela - 71 cm × 93 cm


Encontrei um sonho
de lírios azuis 
num jardim de delícias,
sob o intenso brilho do sol.
Bailávamos leves, leves,
ao som da Petrushka.
Abalámos então 
até à praia, areia cor de mel,
e navegámos num batel
uma verde onda do mar,
num constante sobe e desce.
Assim a gente cresce, 
aparece e desfalece,
como no carrossel popular
onde baloiça o amor,
a combater toda a dor,
a rodar, a rodar, a rodar.


Hieronymus Bosch, 1504

óleo sobre madeira - 220 cm  × 389 cm

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Só 
Como rio que desagua no deserto
Gemendo em surdina 
Respirando fome, frio e morte
Duna gélida trespassada pela lâmina doirada
De feridas expostas na consciência
Universo por que me consumo
Noite adentro, dias  afora, anos a fio
À procura do nada que me atormenta
Me puxa, me fala, me canta e me adormece
Ó criança de mim, mais infante, crédula
Impiedosa, apaixonada e risonha
Onde ficaste quando trocavas figos por tostões
E distribuías amêndoas de casca dura
Pelo sorriso dos outros e pela promessa
Da morte fingida num jogo de índios e cóbois
Como era tudo tão direto e sem pensamento
Deitado no feno contava as histórias
Inscritas nas nuvens pelo vento varridas
Devagarinho no murmúrio das águas límpidas.

sábado, 21 de novembro de 2015

a soma das partes

Em dias escuros onde se esconde o sol atrás das nuvens  tocamos os dedos e todos os fantasmas desaparecem. Às vezes sinto no estômago a crueza das horas e a ágil manha do mundo que desconheço quase totalmente. Não sou deus e ainda bem, sou mais eu partido em pedaços que comunicam uns com os outros em todo o tempo. Não sei a finalidade da minha existência nem a dos outros e tão pouco se se preocupam com isso. Sorte a deles se forem felizes assim. Trago em mim vários eus como provavelmente quase toda a gente. Não acho que os outros sejam assim tão diferentes de mim, afinal partilhamos noventa e nove vírgula nove por cento do código genético. Se sou racista ou preconceituoso, sou-o de mim mesmo. Não sei se sou bom ou mau, a maldade e a bondade estão para além da esfera da minha vida transcendental, estão quando muito, na imagem que transmito aos outros pelo facto de existir e ser material. Não pedi para nascer, tal como ninguém pediu, fui lançado no mundo, e a cada dia a responsabilidade de me erguer e continuar ou não o caminho, é toda minha. Não sou perfeito nem  quero ser, por saber de antemão que tal é impossível, sou feito de matéria corruptível e, tal como qualquer criatura viva, aproximo-me cada vez mais da meta que levará à fixação de mim mesmo, à minha existência absoluta. Quando saio de casa a qualquer hora do dia, as pedras da calçada empurram-me contra os meus pés tal como a todo e qualquer um. Sinto-me por isso tratado pelas leis do mundo, as da natureza, as outras todas são ficção e provisórias, com toda a justiça possível. Não sei se poderíamos viver num mundo mais elegante ou mais belo. Este em que vivo já tem tanta beleza que o tempo da minha vida não me permite percorrê-la, teria de ler todos os bons livros, percorrer todas as aldeias de todo o mundo, conhecer todas as boas pessoas, ouvir todas as boas músicas e ver todos os bons filmes. Sei que este mundo apesar de conter imensa beleza, me permite, ainda assim, sonhar utopias. Mas estas, penso eu, são apenas imagens construídas pelas células do meu cérebro e nada mais que isso. Por isso as minhas utopias apenas estão em mim, embora as possa partilhar, muito parcialmente, com os outros, caso eles tenham por mim algum respeito e para mim algum tempo. A minha vida é só minha e de mais ninguém, sou como um lobo solitário que se perdeu em pensamentos e deu por si longe da alcateia. Só lhe resta a lua, os caminhos pedregosos e o vento para transportar os seus uivos. Vivo dentro da minha pele tal como me ensinaram os professores de ciências naturais. Mas mesmo assim, às vezes sinto frio dentro do meu corpo e até na consciência. Talvez sejam os conselhos dos outros para manter a cabeça fria e não agir a quente, como se eu não fosse um animal de sangue quente. Todos o somos, e por isso há alguns, tal como os vampiros, que têm necessidade de sentir, não o próprio, mas o dos outros, numa atitude de identificação com a humanidade. Isto é ser humanista. Querer identificar-se no sangue vermelho, porque o que interessa no sangue é a cor e a temperatura, talvez o sabor seja importante para alguém, é querer ser deus, mas não um deus qualquer, um deus-mundo senhor de si próprio e de todas as suas partes que formam uma unidade absolutamente coesa e inquebrantável. Tal como Espinosa e talvez o Caeiro de Pessoa. Esse deus, ou como quer que lhe chamemos, é indubitável. Existe mesmo, não podemos pôr em causa a nossa existência sob pena de estarmos a delirar, depois de tudo o que se passou na história da literatura filosófica. Como parte ínfima do mundo que sou, seria demasiada petulância querer-me subtrair ao mundo, que sem mim também não existiria. Afinal o todo é sempre a soma das partes.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

CARLOS PAREDES

Oh música minha amada,
que me levas de viagem
à noite divertida, 
ao canto de amanhecer
e à dança dos camponeses.
Contigo bailamos 
como papoilas ao luar  
e encontramos
os nossos amigos.
Contigo estremecemos,
voz da terra vibrante
que nos faz respirar
até ao deslumbramento
na consciência do nada.
Música, ora pela saúde
dos nossos tímpanos,
para que se não perca 
o movimento perpétuo
nos verdes anos,
nem as asas sobre o mundo
e muito menos a arte
da militância 
que nos impede de desistir.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

governo

A quatro de outubro do ano da graça de dois mil e quinze houve eleições para escolher deputados à assembleia legislativa da república portuguesa. Concorreram vinte e dois partidos. O partido mais votado (psd) conseguiu 89  deputados, o segundo (ps), 86 deputados, o terceiro (be), 19 deputados, o quarto (cds), 18 deputados, o quinto (pcp), 15 deputados, o sexto (pev), 2 deputados e o sétimo (pan), 1 deputado. No total 230 deputados. Nenhnum dos outros partidos elegeu deputados.
A direita política (psd e cds) soma 107 deputados. Os outros partidos (ps do centro político, be da esquerda , pcp da esquerda , pev ecologista e pan que se diz sem ideologia) somam 123 deputados. A direita política não tem maioria. O centro-esquerda e a esquerda têm a maioria. Se há entendimento em questões essenciais como educação, saúde, habitação, segurança social, economia, trabalho, cultura, ciência, entre os partidos de centro esquerda e esquerda, não deverão ser eles a governar? Afinal quem ganhou as eleições?
Se atendermos ao significado da palavra "democracia", poder do povo que escolhe através de sufrágio universal sem voto obrigatório, todos ganharam, mesmo aqueles que se abstiveram, todos exerceram o seu direito, uns de votar outros de não votar. Quem não vota decidiu entregar a decisão a quem escolheu. Não decidir é sempre decidir não decidir, em democracia toda a atitude legal, moral e ética é legítima. Pois que assim seja. Há um velho princípio, o da maioria, que diz que em democracia quem deve decidir é a maioria. É difícil não concordar politicamente com esse axioma. Vivemos nele e com ele e não é assim tão depressa que o vamos abandonar. Então porque tremem alguns empresários, leia-se "capitalistas", com nervoso miudinho? Então a vontade da maioria do povo não é para respeitar?
Com a revolução francesa o poder político tornou-se tripartido: executivo (governo), legislativo (representantes do povo) e judicial (tribunais). É um trindade axiomática que trouxe notáveis progressos na aplicação da ética e da moral nalgumas partes do mundo ao longo de muitos anos e ainda hoje, apesar dos sinais preocupantes que vêm de diversas latitudes.  O governo governa, isto é, toma todas as diligências possíveis para que as leis sejam executadas, governar é tão somente fazer cumprir as leis. Ao governo não cabe fazer leis. Quem manda no governo é o povo através dos seus representantes, o governo não governa a assembleia legislativa, ela é autónoma, tal como o povo. As leis emanam da vontade popular e são feitas pelo legislador, o conjunto de deputados, legítimos representantes do povo. Os tribunais julgam para que de alguma maneira a justiça se cumpra e a interpretação da lei não seja atrabiliária, para que não haja abusos de poder, para que haja equilíbrio no deve e haver individual e social. Deve respeitar-se a tradição quando ela é democrática e não quando ela vai contra a liberdade, a igualdade e a fraternidade, por isso o respeito pela vontade do povo é o respeito político máximo, corresponde ao grau máximo da ética política. Não há argumentos sólidos que justifiquem o "nervoso miudinho" de alguns empresários, a não ser a justificação psicológica do medo de perder o poder que o dinheiro dá sobre os outros: alterar a base tributária parece fazer temer e tremer alguns, mas pode ser uma legítima decisão dos representantes da maioria do povo que pode, deve e tem o direito a entender-se para formar um governo que esteja de acordo com os entendimentos fundamentais de uma maioria muito mais do que aritmética.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

vento

à medida que o tempo passa
o vento ondeia a vida
as cristas das montanhas
acumulam camadas de pó
sobre a história da pele
que se vai desprendendo
no dia a dia, no rame rame
as turbas de sísifos carregando
subindo, forçando, gritando, rindo
as voltas que o mundo dá
a roda gigante passando
esmaga, subsume, absorve
máquina sem eixo de atrito
volante sem timoneiro
nem qualquer fundamento
é o vento que evola, voa e sobrevoa
e nos mantém cativos uns dos outros
abracemo-nos enquanto escutamos
o rumorejar das águas e a navegação das penas
beijemo-nos: quando os lábios se tocam
o universo urge e o sol nasce não para queimar
mas para aquecer e invocar a luz 
para o imenso oceano das trevas
então os corpos fundem-se
como o metal sob o desígnio de Hefesto
e a vida espraia-se por entre as marés
nas areias do sul de horizonte azul-turquesa
onde florescem cristais como palavras
conchas puras, almas despidas, sem destino, navegando...

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

sentir



não sei dizer ao certo o que sinto
mas posso pincelar a folha branca
de pequenos movimentos circulares
de abelha sobre os frutos serôdios do verão
do pendular incessante dos ramos finos
das árvores que me interessam, as mais próximas
as pequenas agitações das folhas verdes claras
verdes escuras sob um ramo seco cuja extremidade
suporta animadamente uma libelinha quase transparente
equilibrando-se à luz do sol reluzindo suas asas de cristal
baloiçando ou parando qual estátua viva admirável
como se à sua volta nada existisse ou apenas a realidade
fosse o seu pensamento autorreflexivo
talvez só sonho este estar acordado com a pontaria da atenção
o mais afinada possível
ao olhar devagar para a paisagem eis que não vislumbro
nem abelha nem libelinha, 
abalaram do meu pensamento
ou fugiram da realidade em direção ao nada que eu próprio desconheço?

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

utopia e solidariedade


A solidariedade, responsabilidade recíproca entre as pessoas, será uma utopia?    
A utopia é uma ideia que parece irrealizável. Terá sido uma palavra inventada por Thomas More (1478-1535) para nomear uma sociedade ideal, numa ilha, onde toda a gente seria feliz porque a organização política, social, económica e cultural, estaria isenta de todos os erros e vícios que convergem para o mal no mundo em que vivemos e que, de certo modo, é uma constelação de distopias, por oposição às utopias. 
Etimologicamente, utopia é um não lugar. Nesta perspetiva a utopia não existe materialmente. A utopia é real apenas na perspetiva platónica, enquanto ideia. 

Para o conhecimento, muitas vezes é mais importante o invisível do que o visível. O essencial é invisível aos olhos, tal como nos mostrou Antoine de Saint-Exupéry, só se vê bem com o coração. Muito antes, já Platão considerava que a autêntica realidade é invisível e tudo quanto constitui o mundo sensível não passa de cópia imperfeita dum modelo real inacessível aos sentidos, mas não ao pensamento.
     Eduardo Galeano escritor e jornalista uruguaio (1940-2015), escreveu: "a utopia está  no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte distancia-se dez passos mais além. Para que serve a utopia? Serve para isso, para caminhar." 
Perguntamos agora, as utopias são realizáveis? Isto é, poderão ser construções humanas em correspondência perfeita com as ideias? 
A república de Platão (428 a 347 aC) , a utopia de Thomas More, a cidade de Deus de Santo Agostinho (354 - 430) e a sociedade comunista proposta por Karl Marx (1818-1883), são utopias? As utopias são irrealizáveis?
Se realizadas, deixarão de ser utopias para pertencerem ao mundo material  humano, se apenas  pensamento, continuarão utopias. 
Contudo, as utopias têm uma força enorme na prossecução da vida humana, sem utopia não haveria caminho, de algum modo, o futuro é a cada momento um conjunto de utopias mais ou menos universais. A utopia existe, primeiro como ideal e, depois, como processo material individual, social e histórico, isto é, como caminho, com certeza interminável.
O voo solitário de trinta e três horas, sem escalas, em 1927, realizado pela primeira vez por Charles Lindberg (1902-1974) sobre o atlântico norte era, para muitos, considerado uma utopia, mas foi realizado. 

A utopia que vive em nós, tem uma força gigantesca, com ela podemos sempre  progredir.  Podemos afirmar, tal como Eduardo Galeano, sem utopia não haveria caminho nem solidariedade. Esta é uma prática, consequência de um pensamento sólido e de um combate permanente contra o maior do males, a ignorância.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

IMPRESSÕES

Um sol tremendo
a fazer ferver o mundo
como lava de vulcão
embrenha-se nas trincheiras
da terra onde não há só guerra
mas também girassóis,
ventos alísios
e alguma esperança.
Um pássaro debica
na corola das extintas
pétalas da flor de árvore
do paraíso enquanto escuto
o crepitar das suas folhas
e respiro o ar aparentemente
fresco da manhã
oiço, na rádio, o poderoso
contralto vocal
de Amy Winehouse,
avisto a janela triangular
que não se abre
mas dá para o firmamento
azul luminoso,
entrecortado pelas alvas
cordas da roupa,
entrevejo nódulos de luz
sob a laranjeira do quintal
dançando num limiar cismático.
Sinto-me um caso particular
de mónada leibniziana
preso nas teias da existência
prestes a acordar
num mundo desconhecido.
©PR

A lei da vida

     O presente é a prenda que o mundo nos deu, é o melhor e o pior, é tudo. Aqui e agora está e é o que podia, pode ou poderá ser. Qualquer época da nossa vida é a melhor possível. Não dominamos parte de nós, muito do que somos é inconsciente, isso manifesta-se, por exemplo, na arte. A arte vai muito para além do artista, este, por vezes espanta-se com as suas próprias produções. Há, com certeza, racionalidade. É a razão que nos permite a mudança para melhor através do trabalho, da meditação, da reflexão sobre o que vem à consciência e que parte, eventualmente, do inconsciente, passando pelo subconsciente. Os medos, as angústias e os preconceitos estão enraizados em todos de diferentes formas, consoante a constelação cultural em que vivem. Podem ser descobertos e racionalizados pela literatura, a forma de arte que mais apela à reflexão enquanto se frui. O mundo pode melhorar a partir do momento em que cada um se aperfeiçoa. O caminho para a perfeição não é impossível, concretiza-se pela leitura, pela reflexão, pelo pensamento sobre a vida e pelo desenvolvimento da capacidade de viver, olhar, escutar, sentir. Somos inteiramente livres se dispusermos de tempo e de espaço para fazer arte e para refletir sobre ela enquanto a contemplamos. Somos animais estéticos, a estética é individual e comunitária, logo política. Fabricar arte e "consumir" arte é um ato político e é ao mesmo tempo o que nos torna humanos, embora tenhamos muito, talvez mais do que o que o cristianismo nos legou, em comum com os animais a que chamamos irracionais. 
     Não me parece que haja progresso humano com a evolução histórica. A própria história nos dá essa informação. O holocausto é disso um exemplo. Há inovação tecnológica que traz sempre consigo esperanças e angústias. A velocidade do comboio no século XIX trouxe consigo tantos medos e temores como a internet nos nossos dias. Nós é que não chegámos a senti-los. Não me parece que as conquistas tecnológicas sejam a proximidade do apocalipse. O mundo já esteve para acabar várias vezes, segundo relata a história das crenças metafísicas e religiosas. Apesar de tudo, nós cá continuamos e os nossos descendentes farão o possível para sobreviver com a menor dor possível, essa é, parece-me, a lei fundamental da vida.

domingo, 19 de julho de 2015

O que há de novo para dizer?

        O que há de novo e realmente importante para dizer que não haja já sido dito? Bem vistas as coisas, depois de Platão e de Aristóteles e da gigantesca panóplia de comentadores seus, parece que não há nada de novo sobre a terra que valha a pena refletir em grande profundidade. Esse trabalho já terá sido feito. Contudo nenhum pensador ou cientista, tanto quanto se pode saber, explicou, desvendou ou descobriu o porquê dos enigmas que se mantêm desde sempre e provavelmente para sempre: o enigma do mundo e da vida. A estes dois enigmas outros se encontram associados: a origem do universo, o tempo, o finito e o infinito, o amor, a morte e a fala. Muito provavelmente jamais aqueles enigmas serão explicados, justificados ou compreendidos. As dimensões a que chamamos razão, emoção e sentimento mostram, a cada dia que passa, imensas limitações. Todas as reflexões que surgem, e que podem vir a manifestar-se, baseiam-se na linguagem quer falada quer escrita e esta linguagem foi, é e será sempre um problema para si própria. Todo o conhecimento teórico é de natureza metafísica. Há sempre uma distância infinita entre as palavras e as coisas. Há sempre um hiato entre dois ou mais seres racionais que comunicam, a racionalidade é sempre afetada pela emoção, não há uma razão pura tal como Kant postulou. Por sua vez, a emoção é também determinada por fatores arcaicos como o marcador somático, referido por António Damásio. Por outras palavras, não há, nem é possível, uma comunicação perfeita.
        A nós, pequeníssimos grãozinhos de poeira do século XXI foi-nos legado um registo de memórias muito maior do que aos nossos antepassados. São gravações na pedra, no pergaminho, no papiro, no papel, nas fitas magnéticas, nos discos rígidos dos computadores e na gigantesca e complexa rede a que chamamos internet. Por isso é possível fazer progredir, com mais eficácia, o trabalho científico na área da linguagem e  da fala. Tudo o que se faz tem por detrás a linguagem, por isso tudo o que se pensa e se projeta, é em primeiro lugar palavra, só pela palavra se diz o que se pensa. A palavra é o som emitido pelo aparelho fonador. Esta emissão ou projeção deriva da necessidade do organismo se expressar para comunicar, cujo sentido primeiro é pôr em comum, reunir, tornar único, partilhar. A palavra possibilita a comunidade, viver humanamente é partilhar, sendo a partilha primeira a da fala. Dizer ou falar é emitir palavras na presença do outro para o outro, escrever é falar em silêncio, soliloquiar e, assim, tornar-se potencialmente a companhia de algum outro. Desde que Platão escreveu até hoje, talvez milhões de pessoas tenham partilhado, principalmente por meio de traduções, a sua escrita. Essa comunidade anónima, na medida em que partilha o texto de Platão, no todo ou em parte, forma aquilo a que poderemos chamar "Platão". O que poderá ser Platão no século XXI senão a leitura e a partilha, de algum modo, dos textos que nos deixou há dois mil e quinhentos anos? Platão já não existe, o que há é uma constelação de textos, traduções, comentários, críticas,  que estabelecem alguma relação entre si. De qualquer modo as palavras que escreveu surgiram da necessidade, assim como radicam na necessidade o ato de leitura, de interpretação, de releitura, de reinterpetação e assim sucessivamente. 
        Se nos ativermos à dimensão fundamental da vida, o tempo, e as suas mais comuns ou possíveis interpretações, sabemos, tal como nos ensinou Agostinho (354 - 430), teólogo e filósofo cristão muitíssimo influente, que há sempre uma partição do mesmo em três conceitos: passado, presente  e futuro. O passado consiste apenas num conjunto ou constelação de memórias vivificadas, não se pode dizer que tenha uma existência atual, o presente é aquela ínfima ligação entre o passado e o futuro, é o vivido, pensado aqui e agora, neste preciso instante, o futuro não pode ser mais do que uma projeção fundada no passado. Passado e futuro são tempos da "alma", são tempos apenas do pensamento quando, e só quando, este se exerce. Não há passado nem futuro, tal como poderemos deduzir do pensamento de Nietzsche (1844-1900), o que há é um eterno presente quando é refletido e vivido intensamente. Como é impossível desviarmo-nos da dimensão temporal para tentarmos compreender seja o que for, tudo o que podemos dizer não passa de uma narrativa que jamais poderá ter fim. Tal como Heraclito   (535 a C - 435 a C) terá revelado, tudo flui, a mudança constante é característica primordial da realidade: ninguém pode tomar banho duas vezes na água do mesmo rio. Tudo e todos estão em perpétua mudança, pelo que é difícil, (por que não impossível?) pensar aquilo que é. Nada é, de facto. Tudo foi, está sendo ou será. E este é de facto o problema da palavra: qual é a realidade que denota quando a partilho ou a mostro num determinado momento? A palavra é a mesma, apresenta a mesma grafia ou a  mesma característica fonética doutros momentos ou doutros contextos. Mas se a realidade se encontra em permanente metamorfose no presente, a palavra permanece sempre aquém do mundo ou das coisas. A linguagem vai atrás do mundo, as palavras vão sofrendo alterações de significado e enquanto umas vão morrendo outras vão nascendo, tal como os seres. Não somos os mesmos de há minutos ou de há anos atrás. No limite teríamos de produzir a cada momento uma palavra nova para denominar determinado ente que se encontra em mudança, e que assim já é outro, isso significaria não pensar. Haveria um bloqueio do nosso 'sistema operativo' devido à impossibilidade lógica de nomear a cada instante um novo ente e ao mesmo tempo devido ao paradoxo do sujeito nomeador se encontrar também ele em mudança.  O pensamento é movimento que se intui  a si próprio e se desenha, se desenrola, se desdobra. 
        A sinapse, bioquimicamente, a "unidade" do pensamento, é fluxo de neurotransmissores entre neurónios, é movimento interno no cérebro, mudança, troca, ressalto, complexo é certo, como é certo também que determina o pensamento, nomeadamente sob a forma de palavra. Cabe aos cientistas descobrir quantas e quais sinapses, em que sítio e como funcionam, para que melhor se compreenda este fenómeno tão espantoso que é a palavra. A palavra não pode dizer a realidade não linguística porque a realidade não é tão estática como ela. A palavra filosofia terá sido dita ou escrita pela primeira vez por Pitágoras (571 aC - 495 aC): Φιλοσοφία.  A grafia é a mesma volvidos mais de dois mil anos, mas o significado da palavra filosofia apresenta respostas diferentes na atualidade, como é diferente o significado do termo filosofia em Descartes, mathesis universalis,  em Hegel, Ciência das ciências ou em Marx, transformação do mundo. O pensamento como realidade que se pode pensar a si própria é uma ficção necessária, a palavra é a ficção de si própria e da outra realidade para a qual  aponta. Pela palavra se diz, mas o dizer não é mais do que uma efabulação mais ou menos lógica, mais ou menos aceitável ou compreensível sobre aquilo que supomos serem sinais ou indícios da realidade.
        Como a realidade é em si própria mudança, fluir incessante pela temporalidade, há sempre novidades para dizer, novas realidades e necessariamente novas palavras. Palavras velhas com significado novo e palavras novas nascidas do ventre das velhas que hão-de ser subsumidas ou substituídas por outras ainda mais novas e assim sucessivamente. O novo na linguagem, como em tudo o mais, não é mais do que a metamorfose do velho.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

lua

a lua sorri
não sabe que sorri
não sabe que existe
e nós que a vemos
sabemos que ela existe
que sorrimos para ela 
quando a vemos
e sabemos de nós
que nos desconhecemos
como todo o mundo desconhece
o que supõe ser o mundo
não é por não termos sentidos
que nos dêem a verdade
é por sabermos que dentro
e fora de nós há sempre
um buraco negro que absorve
toda a realidade, pode ser matrix
génio maligno, jornal, net ou tv
conversa do lado no café da esquina
desabafo no autocarro  
declaração na caixa do supermercado
ou revista velha no consultório do dentista
mas como não sabemos quando está 
nem onde está ou como se mostra
mesmo que tenhamos a verdade 
nas mãos à frente dos nossos olhos
e a cheiremos com todas as células
das nossas mucosas nasais
não a identificamos
não lhe podemos dizer: 
verdade como és bela
quero-te, leva-me contigo
por esse universo fora.

DESAPRENDER

Tenho a sensação, 
talvez desde que me conheço,
que me encheram a cabeça, 
não só de ideias bonitas, 
mas também de alguns fantasmas,
como  as  profecias do fim do mundo,
o apocalipse, o medo da morte, o pecado.
Tentaram colar-me à pele
sensações manipuladas; 
despejaram na minha (in)consciência
o medo de Deus, o medo da natureza,
o medo da polícia, o medo da professora
(da palmatória), o medo do sexo,
o medo da autoridade.
Quiseram enfiar-me na moleirinha 
o ódio ao cigano, o desprezo pelos desvalidos, 
por aqueles que não têm onde cair mortos.
Tentaram incutir-me a indiferença 
pelas pessoas de "cor", pelas prostitutas, 
pelos homossexuais, pelos comunistas.
Quiseram ensinar-me a respeitar 
os discursos gravados do ditador
e a escutar com atenção as conversas 
em família do presidente do conselho.
Quiseram fazer de mim um aprendiz da miséria,
tentaram (des)educar-me 
para ser tolerante com o intolerável.
Quiseram ensinar-me a ralhar,
mostraram-me como se dá porrada,
como se leva bordoada, 
como não se pode fugir à pancada.
Por isso, uma parte  da minha vida 
tem sido manter a memória das coisas boas,
e a outra, insistentemente, desaprender,   
rebentando as correntes
que me prendem a alma e libertar-me,
sem perder tempo e sem ter pressa.
Tudo isto, só porque o meu sonho, 
ou o objetivo da minha existência,
é se tiver sorte e se chegar a velho, 
poder morrer feliz como se estivesse a nascer,
sentindo a vida a desdobrar-se 
em toda a sua magnificência,
a pulsar-me nas veias 
com a inteira alegria do mundo, 
como  a  música de Mozart que nos 
embebeda de universo, 
como as pinturas de Miró
que nos mostram tudo pela primeira vez
ou como a lírica de Camões 
que nos ensina o amor.

VELHA DE SIRACUSA


tanto erro
tanta maldade
tanta praga
tanta guerra
tanta inveja
tanto ódio à solta
tanta lágrima de sofrimento
tanta água turva
tanta chuva por vir
tanta cheia
tanta ignorância
tanta pseudociência
tanto dogma
tanta bomba
tanta provação
tanta morte
tanta violência
tanta destruição
tanta terra prometida
tanta chuva por vir
tanta flor adiada
tanto amor invisível
tanto respeito que não se vê
tanta felicidade por sentir
tanta vida perdida
tanta criança por cuidar
tanta dança por dançar
tanta alegria por alegrar
tanta esperança enclausurada
tanta coisa boa que não se usa
tanta velha de Siracusa
Post Scriptum:
Conta-se que em Siracusa, na antiguidade, apesar de todos os súbditos desejarem a morte do tirano Dionísio, uma velha não deixava de orar, pedindo a Deus que nenhum mal fosse feito contra o tirano. Sabendo disso, os súbditos perguntaram-lhe o porquê dessa súplica e ela respondeu: quando eu era menina, tínhamos um tirano cruel e desejávamos a morte dele, morto esse, sucedeu-lhe outro tirano, porém mais cruel. E começamos a ter um governo mais opressor. Esse novo tirano é Dionísio, portanto se for deposto, e até morto, sucederá um pior no seu lugar.(1)
(1) Tomás de Aquino e o direito à resistência contra o governante, Prof. Dr. Ivanaldo Santos, Ágora filosófica, Rio de Janeiro, 2007.

a mula de tales

Humanos demasiado humanos,
animais demasiado animais.
Somos do tempo e da vida,
e além da morte nada sabemos.
O espaço sideral, o firmamento,
o planeta onde nos sentamos,
as origens, princípios e fins;
nada disto nos pertence. 
Nosso só o instante do eco musical 
da palavra cristalina e resplandecente
quando escutada com precisão.
Nossa, só a lassidão por evolar,
e a feliz coincidência do amor.
A vida é uma sucessão de causas e efeitos,
de coincidências espantosas.
Da inspiração e do movimento dos corpos,
da luz repentina que invade os olhos,
e vai ao neurónio  ótico,
fazendo surgir o mundo transcendental - 
a consciência -  jogo de luz e sombras
que nos transporta do peso para a leveza e
faz a nossa ambição igualar o desejo.
Mas, mesmo assim, 
dificilmente ultrapassamos a escala ontológica
da fascinante mula de Tales
que passou a transportar lã em vez de sal.


Post Scriptum:
Para Tales de Mileto, filósofo pré-socrático, (624 a. C - 546 a. c.)  a água é a origem e a matriz de todas as coisas.

Atribui-se a Tales de Mileto a história de uma mula que, quando carregava sal, entrava no rio e baixava-se para dissolver o sal e diminuir o peso da sua carga. Tales, para tirar esse mau costume do animal, carregou-o com lã.

Silêncios


A ciência dos silêncios 
pode ser tão exata 
como a matemática
De tão invisíveis são tão belos
e há gente, 
por pouca que seja,
para dar por isso, 
com certeza.
Se sentirmos de mansinho, 
o brilho silencioso das palavras 
nuas na vertigem do tempo, 
podemos encontrar 
a equação  certa 
da epifania da vida,
tal qual ela é, concreta e definida.
E aí respeitaremos
tudo e todos, e a nós mesmos,
como respeitamos as invisíveis
leis da lógica, 
o mundo será de forma tal
que nele valerá
para sempre e a toda a hora,
a ética universal.








teseu

tenho a impressão
imprecisa
cinzenta e parda
de que o mundo não é
como o vejo 
poderá ser outra coisa
talvez uma força escondida
fantasma
serpente que desliza por entre os tojos
sem ser vista, 
escorpião
que ferra tenazmente quem o pisa
que escapa como uma enguia
das mãos do pescador
ocultada pelos batons
esmaltes e macarons
chaneis e ferraris blaks
a realidade não fede
simula, reflete-se
no espelho do mundo
engoda e espanta
no sono e na vigília
no amor e no ódio
no estertor e nas horas
felizes da vida

procuro-a
às voltas
no labirinto do minotauro
qual teseu desmemoriado
pelo amor ofuscante de ariadne

roseira

A roseira da casa onde moro
dá-me rosas sem eu as ter pedido,
vermelhas cor de vinho maduro frutado,
de pétalas frondosas, luminescentes.
Apenas a plantei e lhe mato a sede
quando o vento norte seca o ar.
A roseira deste pedaço de planeta,
assustadoramente bela, sorri-me.
Dá-me a verdade também feita de espinhos,
mesmo assim também a quero.
A roseira invade-me de ternura,
apraz-me até na dor, por isso sonho-a, 
e com tímidos sorrisos me desperta.
Nos dias de folga da minha alma,
a minha amiga roseira e suas rosas
fazem comigo viagens estéticas,
obrigam-me a desenhar palavras,
pétalas, rosas, roseiral, amor.

corpos

branca escura
a luz que desenha
os teus olhos
brilhantes

pálidos os raios de sol
que penetram a tua pele
suave como o colmo
da cabana e do amor

belos os teus seios
que dão toda
a macieza necessária
à dureza dos corpos

águas de março


Cai a chuva finalmente,
e a terra sôfrega agradece.
As árvores das nossas ruas,
contentes, algumas ainda nuas,
dançam ligeiras festejando
ao sabor do vento.
Com esta dádiva do céu 
as acácias irão florir
e as açucenas 
cumprimentar-nos-ão.
Anteras, estigmas, 
ovários, estiletes,
sépalas verdes 
e pedúnculos florais,
transportarão as fragrâncias,
de mil plantas e flores,
de todas as cores 
e formas originais.
Vivam estas águas
que nos afogam as mágoas,
viva a verde esperança, 
olhar de criança, 
liberdade, amor e confiança.
Soubesse a humanidade 
imitar o cuidado  da natureza
e  seria tão bela a Primavera, 
também dos povos, com certeza.
©PR

diamante

encontrei no ocaso
de uma rua estreita
um diamante em estado bruto
pesado e brilhante, tão verdinho.
fiz-me aprendiz de faroleiro
passo o tempo polindo polindo
puxando o lustro com o pano de seda
que me emprestaste
e vejo cada dia que passa
cada noite que se fecha 
no quarto das traseiras
do hotel babilónia
mais uma luzinha faiscando
Bolero de Ravel pela orquestra de Filadélfia
(estou agora a ouvi-lo)
ou pérolas em comum, 
Fome de Hamsun.
pulo de corpo inteiro
num polimento sem fim
e vou polindo o diamante que encontrei
projeta chispas na noite.
agradeço infinitamente os teus olhos.

epifania

sempre que trocamos palavras
querida, tocamos o infinito 
onde nasce a ternura da voz 
e a fluidez suave do mel florido
primavera da poesia
que das raízes desponta,
epifania do nada que tudo é.

O fundamento não existe

As distantes galáxias,
a via láctea e suas miríades de astros,
o sol que nos ilumina e os planetas mais próximos,
a sequoia de Serralves e as oliveiras do Alentejo,
a lagoa de Óbidos e as serranias do nordeste,
os peixinhos vermelhos nos aquários,
as cidades fervilhadas pelo stresse,
as rosas vermelhas de cetim e perfume de amor,
o Nilo a esconder as lágrimas no Assuão,
as múmias do museu britânico roubadas ao Egipto,
o friso do Pártenon subtraído à acrópole de Atenas,
o mar adentro dos teus olhos,
os filhos desejados, os jogos de toda a sorte,
as viagens imaginadas aos confins do mundo,
as filosofias, as religiões, todas as artes,
D. Quixote, Rocinante, Sancho Pança, Dulcineia,
a ilha dos amores e os deuses,
o cântico dos cânticos,
as montanhas russas virtuais,
a quinta sinfonia em dó menor opus sessenta e sete.
Tudo imerso numa onda infinita,
tudo remexe ou repousa, tudo cai ou se eleva,
tudo vagueia sem saber porquê ou para quê.
Tudo procede do nada
e incessantemente se desdobra 
nos mais incríveis adejos
em busca do princípio da razão suficiente
na zona da essência do fundamento
que não existe!