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domingo, 21 de abril de 2013

matar o tempo



Representação de Cronos e Reia num baixo-relevo romano.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cronos

o marcador neural da consciência, tempo,
dura trezentos milissegundos.
um segundo, sexagésima parte
de um minuto, sexagésima parte
de uma hora, vinte e quatro avos
de um dia, trezentos e sessenta e seis avos
de um ano, uma revolução em torno do sol.

o inconsciente
deriva para o consciente
por etapas intermédias
até se fazer luz.
lucidez, lucifer, vermelho, inferno
vénus romano, deus fogo.

cronos-saturno castrou o pai
a pedido de sua mãe
com um golpe de foice.
engolia os seus próprios filhos.
destronado por zeus-jupiter
que o prendeu com correntes 
no mundo subterrâneo.

não se vê mas é ele que tudo pode
é ele que tudo contém e que em tudo está contido
nem Nietzsche o conseguiria matar.
critério supremo da consciência,
tudo o que está escrito e se escreverá 
não passa de uma interminável 
tentativa para o assassinar.

terça-feira, 16 de abril de 2013

gripe

passeiam-se por aqui
os bichinhos no corpo
que eu sou, que eu não tenho.
vírus, bactérias, água
viscosidades nas floras internas
interstícios invisíveis.

a transcendentalidade evola-se
os olhos minguam, choram apertados
as mãos temem, o coração treme
os lábios não beijam, as articulações
desarticuladas, qual bebé
tropeçando em tudo
assim sou eu todo engripado.





sexta-feira, 12 de abril de 2013

cansaço


http://devaneiosdamadruga.blogspot.pt/2011/05/cansaco-mental.html


é sexta-feira
dia do cansaço
dia da véspera
do abraço
dos dedos
constipados
ensonados
fatigados
doridos
mal dormidos.
se eu já tivesse morrido
toda a minha vida
já não teria sentido
saberia
o que sei
céu é nada
inferno nada é
nada existe
tudo é sonho
todo o sonho é ilusão
toda a ilusão é involuntária
toda a vontade é uma quimera
toda a quimera é uma besta mitológica
que lança fogo pelas narinas
não gosta de tangerinas.
mas, ai, eu gosto tanto delas
doces ou agridoces
ácidas, verdes, laranjas
amarelas como as aguarelas
para pintar limões
que custam só cinco tostões.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

alturas




ouvi dizer a gente muito importante,
é preciso estar à altura.
à altura de quê?
das circunstâncias.
não sabia que as circunstâncias
tinham medida.
à altura das responsabilidades?
têm nível as obrigações e os deveres?
que nível têm os pés assentes na terra?
ai que tamanha a mania das escalas
sociais, económicas, financeiras
culturais, atitudinais, educativas, da inteligência.
tanta escalada
tanto querer subir
cada vez mais alto
ao evereste da sociedade.
quem vai ao topo do kilimanjaro
vê mais longe
mas não enxerga as formigas
que trabalham, trabalham.
está tão alto e por isso
não vê a realidade
senão de uma forma abstrata
não sente a poesia a fumegar
da terra, não compreende a formação do húmus
e também não enxerga melhor as estrelas
nem os planetas nem as galáxias.
quem está tão alto
quando defeca suja os outros de imundície
sente-se um deus
não percebe a que sabe
a sopa gata ou a açorda dos pobres
não sente o brilho dos olhos dos velhos e das crianças.
quem subiu tão alto até se considera acima da lei.
por isso vive num mundo sem rei nem roque,
sem ordem e sem beleza
conspirando contra os deuses
desconfiando de tudo e de todos
como desconfia absolutamente de si
e toma o todo pela parte e a parte pelo todo
e semeia o caos e a fuligem e a morte
porque acha que tudo tem um preço financeiro
e com ele tudo se pode comprar, tudo se pode pagar
tudo se pode dominar, até mesmo o próprio deus 
ou os deuses caso haja mais do que um.
quanto custa a nuvem do céu, a árvore do campo,
o marulhar do riacho, o barbo do ribeiro da minha aldeia?
não estão à venda, por isso não custam nada
e o que nada custa não tem preço 
como os beijos, as carícias, os abraços e os olhos a jogar ao sério.
estão à altura apenas de quem tem os pés assentes na terra.