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sábado, 21 de novembro de 2015

a soma das partes

Em dias escuros onde se esconde o sol atrás das nuvens  tocamos os dedos e todos os fantasmas desaparecem. Às vezes sinto no estômago a crueza das horas e a ágil manha do mundo que desconheço quase totalmente. Não sou deus e ainda bem, sou mais eu partido em pedaços que comunicam uns com os outros em todo o tempo. Não sei a finalidade da minha existência nem a dos outros e tão pouco se se preocupam com isso. Sorte a deles se forem felizes assim. Trago em mim vários eus como provavelmente quase toda a gente. Não acho que os outros sejam assim tão diferentes de mim, afinal partilhamos noventa e nove vírgula nove por cento do código genético. Se sou racista ou preconceituoso, sou-o de mim mesmo. Não sei se sou bom ou mau, a maldade e a bondade estão para além da esfera da minha vida transcendental, estão quando muito, na imagem que transmito aos outros pelo facto de existir e ser material. Não pedi para nascer, tal como ninguém pediu, fui lançado no mundo, e a cada dia a responsabilidade de me erguer e continuar ou não o caminho, é toda minha. Não sou perfeito nem  quero ser, por saber de antemão que tal é impossível, sou feito de matéria corruptível e, tal como qualquer criatura viva, aproximo-me cada vez mais da meta que levará à fixação de mim mesmo, à minha existência absoluta. Quando saio de casa a qualquer hora do dia, as pedras da calçada empurram-me contra os meus pés tal como a todo e qualquer um. Sinto-me por isso tratado pelas leis do mundo, as da natureza, as outras todas são ficção e provisórias, com toda a justiça possível. Não sei se poderíamos viver num mundo mais elegante ou mais belo. Este em que vivo já tem tanta beleza que o tempo da minha vida não me permite percorrê-la, teria de ler todos os bons livros, percorrer todas as aldeias de todo o mundo, conhecer todas as boas pessoas, ouvir todas as boas músicas e ver todos os bons filmes. Sei que este mundo apesar de conter imensa beleza, me permite, ainda assim, sonhar utopias. Mas estas, penso eu, são apenas imagens construídas pelas células do meu cérebro e nada mais que isso. Por isso as minhas utopias apenas estão em mim, embora as possa partilhar, muito parcialmente, com os outros, caso eles tenham por mim algum respeito e para mim algum tempo. A minha vida é só minha e de mais ninguém, sou como um lobo solitário que se perdeu em pensamentos e deu por si longe da alcateia. Só lhe resta a lua, os caminhos pedregosos e o vento para transportar os seus uivos. Vivo dentro da minha pele tal como me ensinaram os professores de ciências naturais. Mas mesmo assim, às vezes sinto frio dentro do meu corpo e até na consciência. Talvez sejam os conselhos dos outros para manter a cabeça fria e não agir a quente, como se eu não fosse um animal de sangue quente. Todos o somos, e por isso há alguns, tal como os vampiros, que têm necessidade de sentir, não o próprio, mas o dos outros, numa atitude de identificação com a humanidade. Isto é ser humanista. Querer identificar-se no sangue vermelho, porque o que interessa no sangue é a cor e a temperatura, talvez o sabor seja importante para alguém, é querer ser deus, mas não um deus qualquer, um deus-mundo senhor de si próprio e de todas as suas partes que formam uma unidade absolutamente coesa e inquebrantável. Tal como Espinosa e talvez o Caeiro de Pessoa. Esse deus, ou como quer que lhe chamemos, é indubitável. Existe mesmo, não podemos pôr em causa a nossa existência sob pena de estarmos a delirar, depois de tudo o que se passou na história da literatura filosófica. Como parte ínfima do mundo que sou, seria demasiada petulância querer-me subtrair ao mundo, que sem mim também não existiria. Afinal o todo é sempre a soma das partes.

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