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quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

FLORES DE CAMPO MAIOR

 

As flores de Campo Maior

são as que nos fazem sorrir,

feitas de suor, arte e amor,

todos as querem ver florir.


Campo Maior, jardim encantado,

onde se constroem sonhos e vidas,

qual novo mundo alcandorado

de  maior valor que as sete partidas.


Chão de humilde e hábil gente,

de trabalho, dedicação e alegria.

Aqui, fácil é andar contente,

Cá  viver e morar, é uma regalia.


Nesta terra nascem flores

Só quando o povo quer,

desabrocham saias e amores

que fascinam quem cá vier.


Representando a  humanidade,

património cultural imaterial,

dizemos agora, com vaidade,

grande orgulho para Portugal!





quinta-feira, 14 de outubro de 2021

DIA INTERNACIONAL DA MULHER RURAL

(15 DE OUTUBRO)

Neste dia, que é mais um, entre muitos outros, que nos podem fazer refletir sobre causas e problemas, independentemente de concordarmos ou não com dias para isto ou para aquilo, faz sentido pensar sobre o tempo e sobre o trabalho em que se encontraram e se encontram muitas mulheres.

Ocorreram-me a este propósito duas obras de arte que nos fazem pensar sobre o tema em questão, uma pintura e um filme.

As Respigadoras - é uma pintura a óleo sobre tela do pintor francês Jean-François Millet de 1857 que se encontra no Museu de Orsay em Paris.


O quadro representa três camponesas ao respigo de espigas de trigo caídas no chão após a colheita. A pintura tornou-se famosa por apresentar de forma simpática as que então eram as camadas mais baixas da sociedade rural, tendo sido mal recebida pela alta sociedade francesa da época.
(Fonte: Wikipédia)

Este trabalho de andar ao respigo (rabisco) parece ser só dos séculos XIX e XX, mas talvez não seja assim exatamente.
Veja-se, por exemplo, a imagem seguinte, baseada na pintura que referi, do século XIX:

Fonte: Blogue "Geografia Hoje"

Há um filme, "Os Respigadores e a Respigadora" (Les Glaneurs et la Glaneuse) de Agnès Varda, sobre os respigadores da sociedade contemporânea, pessoas que se dedicam a recuperar e a reciclar sobras e detritos que outros deitam fora, que nos interpela vivamente sobre estes fenómenos contemporâneos. Obteve inúmeros prémios, entre os quais se destacam o de melhor documentário dos prémios europeus, melhor filme pelo sindicato francês dos críticos de cinema e o Golden Hugo para melhor documentário no festival de Chicago, no ano 2000. Creio que vale a pena vê-lo ou revê-lo.
Isto a propósito do fenómeno do êxodo rural que se mantém e que não resolve nenhum problema de fundo, nem daqueles que saem das terras do interior nem daqueles que vivem no litoral, antes agrava os problemas de todos, nomeadamente os ecológicos e do planeta.
Muitas das gentes, principalmente mulheres, que vão para as grandes cidades, principalmente no litoral, são pessoas de fraca qualificação profissional e que enfrentam grandes dificuldades para conseguir um trabalho digno e bem remunerado. Como se sabe, só o Alentejo, por exemplo, perdeu nos últimos dez anos 7% da sua população, em grande parte pelo êxodo também rural. Só houve um concelho, dos 47 da região Alentejo a ver um aumento da sua população, também pelas más razões conhecidas do grande público, pessoal imigrante de países subdesenvolvidos para trabalho escravo e sub-humano para culturas intensivas e superintensivas no concelho de Odemira.
Esta é uma tendência que parece não ter fim. Até quando? 
Será que as pessoas acordam e se opõem a isto, criando condições para que haja uma distribuição equilibrada da população em harmonia com a cultura, com a tradição e com as paisagens tradicionais? Quando será possível viver bem e ter acesso ao essencial em qualquer lugar do nosso país e do mundo? O que é necessário fazer? 

Ficam as perguntas, no entanto creio que as respostas, para além de serem políticas, tais como as questões, terão de ter por base uma inspiração fortemente verde e de esquerda, responsável e solidária, cujas soluções ainda não foram globalmente experimentadas.









quinta-feira, 26 de agosto de 2021

IGUALDADE FEMININA

“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa - salvar a humanidade”, afirmou José de Almada Negreiros em "A invenção do dia claro", em 1921.

Para que a igualdade das mulheres, cujo dia hoje celebramos, seja uma realidade, podemos dizer o mesmo. Só falta mesmo é garantir, de facto, a igualdade na prática, só falta mesmo, salvar as mulheres, a igualdade feminina. Em muitos países do mundo, nomeadamente no nosso, essa igualdade já está na lei fundamental, mas não é cabalmente cumprida.
Para combater as desigualdades não basta apregoar que as desigualdades devem ser combatidas. É preciso muito mais do que isso. É preciso partilhar responsabilidades e tarefas, garantir os salários com equidade, não permitir que um homem, só por ser homem, ganhe mais do que uma mulher, no mesmo trabalho, nas mesmas funções. A igualdade fundamental, mas não única, é a igualdade económica, só ela permite a emancipação da pessoa, seja ela homem ou mulher. O salário emocional ( o elogio, o reconhecimento, o afeto positivo) também deve ser equitativo e basear-se no princípio da igualdade. Este princípio afirma que ninguém é superior ou inferior enquanto ser humano, enquanto pessoa. Toda a gente é pessoa, como por vezes se diz. 
Este princípio é um imperativo ético e moral que reconhece e confere dignidade a todo e qualquer ser humano, seja homem, mulher, masculino, feminino, heterossexual, LGBTI ou o que quer que seja…

  No Afeganistão, de que tanto se fala agora,  a desigualdade é tão grande, abominável e  horrenda, que até se nega às mulheres o direito de existir. A burca, veste comprida que envolve todo o corpo, dos pés à cabeça, com uma abertura rendilhada à altura dos olhos, usada em público por muitas mulheres muçulmanas, é uma das formas de  negação da existência e, por conseguinte a negação absoluta de quaisquer direitos de quem a usa.
 
Apesar de nós, portugueses, felizmente, não vivermos num regime desta natureza, ainda há hoje, no nosso país e eventualmente  na nossa terra, muitas mulheres que se sentem mulheres coisificadas, mulheres objeto, tal como a Luísa no poema de António Gedeão "Calçada de Carriche", que "Saiu de casa / de madrugada; regressa a casa / é já noite fechada." (…)
Poderíamos tentar enumerar algumas das mulheres que se destacaram com a sua coragem, tenacidade, criatividade e amor, exemplos para a humanidade: Hipátia, Joana d'Arc, Dandara, Marie Curie, Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Rosa Luxemburgo, Maria Lamas, Beatriz Ângelo, etc.. A lista seria interminável, porque de facto  houve, há e certamente haverá muitíssimas mulheres que são exímias como seres humanos, desde logo, porque muitas delas são mães.  Nessa lista está a mãe de cada um de nós,  a melhor mãe do mundo, como não nos cansamos de sentir e de repetir.
Ser mãe é ser uma força da natureza, é agir sempre, a toda a prova e em todo o lugar,  de acordo com um amor gigante e incondicional.

Sabemos dos estereótipos e dos preconceitos sobre o feminino e às vezes, nós, homens e mulheres, quase que somos levados por eles em momentos de fraqueza e de estupidez, por isso nunca é demais combater a todo o momento tudo o que se opõe à igualdade feminina: a exploração económica e  sexual,  a coisificação das mulheres, o assédio, o medo, todas as formas de violência física e psicológica, todas as ameaças, todas as prisões.

Termino com uma frase de uma grande mulher, Rosa Luxemburgo, (1871 -1919) que é um apelo a todos para que não se imobilizem, para que se ponham em movimento lutando pela dignidade humana, que é também a dignidade da Mulher: "Quem  não se movimenta, não sente as correntes que o prendem". Vivam as mulheres de todo o mundo!

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Natureza

 Dia mundial da conservação da natureza

Hoje, 28 de julho, dia mundial de conservação da natureza, recebi, sem solicitar, na minha caixa de correio, cerca de 300g de papéis publicitários (100 folhas A4) de diferentes empresas, nomeadamente de supermercados.

Esta papelada, que me é remetida várias vezes por mês, é impressa a cores com fotografias e desenhos a cores de alta qualidade de todo o tipo de produtos e mercadorias. Os custos de produção desta publicidade são, com certeza, muito significativos no domínio do investimento financeiro das empresas. Mas, se estas práticas continuam, certamente é porque valerá a pena, para as tais empresas, algumas multinacionais, do ponto de vista do aumento das vendas, do consumo e logicamente do lucro. Este parece ser o principal, se não o único, objetivo dos seus donos e acionistas.

Portugal tem, segundo dados da Pordata, um pouco mais de 4 milhões de famílias clássicas. Imaginemos que cada família recebeu, o que é bem possível, no dia de hoje, os tais 300 gramas de papéis publicitários.  Poderão ter sido distribuídos 1 200 toneladas de papéis publicitários (400 milhões de folhas A4) às cores por todas as caixas  de correio deste país.

"Uma árvore padrão na produção de papel, como o eucalipto, é capaz de produzir 20 resmas de papel. Como cada resma possui 500 folhas, 20 resmas possuem 10 mil folhas tamanho A4 de 75 g/m2  por tronco. Se uma árvore é capaz de dar vida a 10 mil dessas folhas, isso significa que para produzir uma folha de papel é necessário 1/10.000 de árvore."(1)

Deste modo, para produzir publicidade em papel para um dia, para as famílias clássicas portuguesas, será necessário abater 40 árvores.

Abate de árvores completamente desnecessário. Na minha casa, como com certeza em muitas outras, a publicidade nem sequer chega a ser lida, vai direitinha para o contentor da reciclagem de papel.

Os números aqui apresentados podem não ser rigorosos, mas fazem-nos pensar no estilo de vida que temos e no que queremos.  Na sociedade individualista, consumista, capitalista, concorrencial,  em que vivemos, em que o lucro de alguns comanda  quase todas as atividades de quase todos, não vai ser possível viver a  médio e longo prazo com qualidade, porque o equilíbrio entre os humanos e a natureza e  a preservação da biodiversidade não estão a pautar o planeamento e a ação necessários. As árvores são essenciais para o equilíbrio dos ecossistemas e para a nossa  qualidade  de vida. É mais do que tempo de inverter políticas de desperdício, das quais apenas apresento aqui um exemplo. Para isso são necessárias opções individuais, que juntas serão coletivas, elas estão na nossa mão.




(1) https://www.pensamentoverde.com.br/

domingo, 18 de julho de 2021

AMAR UMA PEDRA

Como nos sonhos, passo o tempo a inventar porquês.

Indiferentes, os eletrões, o sol, a via láctea,

continuarão por aí, sem consciência, julgo eu, 

indiferentes à vida, à morte e ao sentido de tudo isto.

E se o sentido da vida for ela não ter sentido nenhum?

O universo, como a vida, é mortal e finito,

mas a invenção de porquês continua.

Nenhuma resposta existe fora de nós.

Na aflição da consciência, ora leve ora pesada, 

descobrimos o valor, o significado e  o propósito, 

pouco mais do que teatros, comédias e tragédias. 

Mas o mundo continua a vibrar, como cordas de alaúde,

e nós, ao vibrarmos com ele, sentimos a impressão

da liberdade, como Fernão Capelo Gaivota, voando 

ou Fernão Mendes Pinto, peregrinando.

Liberdade sem livre-arbítrio, 

ser e não ser, ao contrário de Hamlet.

Ai que bom sentir a manhã  de água fresca,

realidade e ilusão verdadeira e boa.

Submergido como uma  tremelga, 

vou descarregando choques  elétricos nos outros

e recebo os ricochetes na justa medida, 

não há dar sem receber, principalmente 

quando se oferece o desassossego.

Às vezes, irritado, anseio por um mundo

onde seja natural até, amar uma pedra.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

cinzas

Quarta-feira de cinzas,
cinzentas, místicas,
engendradas a preto e branco,
saudade de arco-íris
num certo espaço da alma
e comistão de todas as cores,
vertigem neuronal do disco de Newton;
efabulações, manifestos no meu espírito,
qual contentamento de criança
a ver o mar pela primeira vez,
ou sentimento de realidade
pintada por Miró;
como se tivesse acabado
de vir ao mundo e, tendo vivido,
renascesse, depois de morrer
no último ato de um sonho
instituído por um génio maligno
destilando surtos e quarentenas.
Mais do que isto,
é a vida tão colorida,
como a Fénix Renascida.
_______________ // _______________
Foto: Bestiário de Aberdeen (1200 d C)



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

dia de inverno

No meu pensamento de hoje
é inverno e chove desalmadamente.
Sucedem-se-me, na consciência,
frios instantes em linha real,
como patinhos acabados de nascer,
seguindo a mãe, ou Konrad Lorenz,
para todo o lado, em fila serpenteante.
Nós, humanos, não somos assim,
andamos às ochas, as mais das vezes, para nada.
Tanto que podemos aprender com eles,
assim como com os pingos da chuva
que voam quase a prumo, de cima para baixo,
ordeiramente, sem pressas nem ansiedades,
em inteira liberdade, apenas com ligeiros
desvios naturais. Seguem-se uns aos outros,
numa razão tão reta que espanta e emociona.
Tudo isto me apraz tanto que, ainda bem não,
me esqueço do confinamento e das tristes notícias
sobre a corrupção que grassa por esse mundo fora.
Assim, vou derramando um pouco de tinta
otimista, como os pingos de chuva e os patinhos,
nestes espaços em branco,
só para não cair na desgraça que perpassa.

sábado, 30 de janeiro de 2021

Campo Maior

Campo 

maior que o pensamento,

do tamanho dos sonhos, 

sagrada terra onde mora a tua palavra.

Campo inteiro 

de dias transparentes,

como água  natural

de nascente pura e fresca.

Nele se levantam vozes

por mor das penas dos seus filhos

e de quem percorreu seus trabalhos e seus trilhos.

Já abalaram muitos

para a cidade grande,

dia a dia, sol a sol, noite a noite,

afugentando correntes e  grilhetas

com o suor do rosto

que afoga as mágoas

da pele crestada

pelo vento suão, 

pelo calor, pela dor.


Eis  o verde vivo, 

que me tem cativo,

de amarela flor

girando até o sol se pôr.

Eis ainda a bandeira rubra

que mora  na tua voz

que é a voz de todos nós.

Ufano grito do fundo do  peito,

retumbando liberdade

como em Abril 

de cravos mil.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Paisagem e Cultura

 

A palavra "cultura" refere, tal como afirma Blackburn, o modo de vida de um povo, com as suas atitudes, valores, crenças, artes, ciências, modos de perceção e hábitos de pensamento e de ação. É o conjunto dos modos de pensamento, comportamentos e produções materiais e espirituais transmitidos e aprendidos no decurso do processo de socialização. A cultura fornece os meios de adaptação do ser humano ao seu ambiente e desempenha um papel fundamental na unidade e diversidade da espécie humana. Onde há seres humanos há cultura, ela é o conjunto de todos os traços e produções específicos dos seres humanos de todas as latitudes do planeta Terra. É universal, na medida em que há cultura em qualquer espaço ou paisagem onde se encontrem membros da espécie humana, mas é também diversa, porque há uma infinidade de possibilidades dos seres humanos se organizarem para viverem em sociedade. É a cultura que define a humanidade. Não haveria humanidade sem cultura. Por isso tal como os seres humanos são diversos, também são diversas as culturas e em cada uma delas se pode divisar um conjunto de características comuns a todos os indivíduos que nelas participam e que define aquilo a que chamamos “padrão cultural”, isto é, maneira própria e tipificada de pensar, sentir e agir, específica de uma determinada cultura. A cultura é adquirida após o nascimento e transmite-se de geração em geração por meio da linguagem num processo complexo de socialização primária e secundária.

Poderemos perspetivar a cultura de diversas formas: do etnocentrismo ao relativismo. Não nos parece que a primeira, o etnocentrismo, seja no século XXI uma visão correta, já que aponta para  a ideia de que o povo a que se pertence, com as suas crenças, tradições e valores, é um modelo absoluto a que tudo o mais deve submeter-se. Não devemos defender imposições absolutistas nem sequer imposições de tipo nenhum, não faz parte do nosso léxico vivencial, tanto intencional como prático, qualquer forma de totalitarismo. Por isso, devemos entender a cultura numa perspetiva do relativismo, na medida em que reconhecemos que não há critérios universais e independentes de bem e de mal, de belo e de feio, mas não aceitamos um relativismo absoluto que tolere tudo.  Devemos ser tolerantes e compreensivos porque não podemos nem devemos condenar o que é diferente de nós só porque é diferente. A virtude da tolerância tem de pressupor limites e intolerância face aos intolerantes, torna necessária e impreterível a concretização prática dos direitos humanos universais. A cultura, seja em que contexto ambiental for, deve promover sempre o bem-estar humano em reciprocidade com o respeito pela natureza. Mas a cultura emerge sempre num contexto, em parte determinado pela paisagem herdada seja ela natural ou humanizada. Algumas questões que creio importantes e que se ligam ao espírito desta reflexão são:

- Que relação existe entre paisagem e cultura?

- Como poderemos agir para alterar essa relação, no caso de ela estar a ser incorreta?

Recordo uma das primeiras aulas de geografia quando frequentei o oitavo ano do ensino geral unificado, em finais dos anos setenta do século XX, a qual se iniciou com a definição de Geografia: a ciência que descreve e explica as paisagens naturais e humanizadas. E logo vieram as perguntas dos alunos, como é que sabemos o que é natural e o que é humanizado?

 No contexto europeu e português e mesmo mundial, quase não há paisagens absolutamente naturais no sentido de que não tiveram ainda qualquer intervenção ou influência humana. Os processos de industrialização, de urbanização e de vida dos seres humanos estão submetidos, há muito tempo, à globalização onde, com certeza, é provável o efeito borboleta. Tudo está ligado a tudo, a poluição numa parte do mundo influencia, por pouco que seja, todas as outras partes do mundo.

Podemos referir paisagem e cultura por um conceito de duas palavras: paisagem cultural. A UNESCO, através do Comité do Património Mundial colocou em destaque o conceito de paisagem cultural pelo seu reconhecimento enquanto categoria, mas a sua génese acontecera já no século XIX. A paisagem cultural é a paisagem criada pela cultura humana. De acordo com a visão determinista, a paisagem cultural é construída pelos seres humanos cujo comportamento obedece apenas a fatores de natureza ambiental.  Sabemos que não é assim, por exemplo, Franz Boas (1858-1942), um dos pioneiros da antropologia moderna, desenvolveu a ideia de paisagem cultural com a introdução do conceito de relativismo cultural, partindo do pressuposto de que cada povo/cultura se expressa ou se pode expressar de forma diferente em ambientes semelhantes. Podemos defender a importância da especificidade de cada cultura e de cada lugar para compreendermos as paisagens culturais, em contraste com a ideia de evolucionismo linear e unidirecional do desenvolvimento da humanidade. Daí que os fatores culturais de natureza não material, sejam muito importantes, mas não únicos, na perceção da transformação das paisagens. Para além das diferentes visões e entendimentos do que é a paisagem cultural, percebe-se, cada vez mais, que a paisagem tem uma história que é impreterível reconhecer, tem os seus próprios ritmos e temporalidade. Por isso uma das áreas atuais de pesquisa é a “biografia da paisagem”. 

O debate que importa fazer sobre as paisagens culturais é aquele que tem a ver com a preservação da identidade cultural e paisagística no contexto de mudanças que devem ser pensadas coletivamente no respeito pelos direitos humanos e pela preservação da biodiversidade com uma economia sustentável a longo prazo. Assistimos há alguns anos, por exemplo, em todo o Alentejo, a uma crise da paisagem que sofre devido ao êxodo rural e à perda demográfica, e desemboca numa perda progressiva do saber enraizado na cultura das comunidades que paulatinamente vão desaparecendo. Isto não é uma inevitabilidade, reconhecemos isso, e para tal aqui se faz algum caminho de reflexão que se impõe e que não pode esmorecer. 

O estudo das paisagens culturais deverá ser  feito no sentido de compreender a sua história e  cultura, de apreender a sua identidade e consequentemente melhorar a sua perceção; a leitura e interpretação das paisagens culturais são imprescindíveis para a sua correta gestão e  para uma boa intervenção, se necessária, tanto no presente como no futuro; as decisões que decorrerem do estudo, reflexão, análise e debate sobre as paisagens e a cultura deverão garantir a sobrevivência condigna das comunidades locais dos pontos de vista social, económico, cultural, ambiental e ecológico. Por conseguinte, nesta senda, vislumbra-se a necessidade humana de identidade cultural intrinsecamente ligada, não apenas a um sentimento de pertença a determinado grupo étnico, cultural, religioso, mas também à sua ligação profunda à terra, à paisagem. Veja-se, por exemplo, o cante alentejano como Hino e  Alma do Baixo Alentejo, como é mostrado pelo  mestre José Gato, a partir do cancioneiro de Serpa:

Alentejo, Alentejo

Eu sou devedor à terra, a terra me está devendo!

Eu sou devedor à terra, a terra me está devendo!

A terra paga-me em vida, eu pago à terr'(em) morrendo!

 A terra paga-me em vida, eu pago à terr'(em) morrendo!

 Alentejo, Alentejo! terra sagrada do pãão!

 Eu hei-de ir ao Alentejo, mesmo que seja no Verão.

 Ver o doirado do trigo na imensa solidão.

 Alentejo, Alentejo! terra sagrada do pãão!

 

https://www.youtube.com/watch?v=xxDz28Fhp-0

 

Devemos defender a preservação do património cultural pela recolha e manutenção de memórias vivas e dinâmicas, como o cante, por exemplo, porque pode potenciar formas interessantes e profícuas de desenvolvimento social, cultural e económico como o turismo cultural, na medida em que for compatível com a qualidade de vida dos locais e de quem os visita. Mas é igualmente necessário defender e preservar o património material edificado e classificado em todas as paisagens, sejam urbanas ou rurais. É desolador ver, como aconteceu recentemente, nos arredores de Évora, uma anta do período neolítico arrasada para plantação de um amendoal intensivo, património à mercê de interesses privados e do desleixo das entidades públicas. Inaceitável é também a invasão do olival intensivo junto às populações, pondo em causa a qualidade do ar que se respira, da água que se bebe,  do silêncio que se necessita e do horizonte visual tradicional tranquilo. Igualmente preocupante e inaceitável é a alteração da paisagem do montado alentejano, agora atacado e invadido por culturas intensivas, criando ilhas de sobreiros e azinheiras que, cercados, têm a morte anunciada, impossibilitando outras formas de economia tradicional sustentável, como a criação do porco alentejano à base de bolota.

Os exemplos aqui apontados mostram que há paisagens tradicionais, como o olival de sequeiro, e expressões culturais positivas que lhes estão associadas, ambas em risco, e que é possível alterar este estado de coisas. O olival tradicional, ao contrário do intensivo e super intensivo, preserva os aquíferos, não polui os solos nem o ar, não agride esteticamente, é um investimento de longo prazo, cria expetativas positivas  intergeracionais, desenvolve-se num tempo lento com um alto grau de previsibilidade, cria produtos de melhor qualidade, dá confiança às populações locais, permite, não o imobilismo, mas uma evolução paulatina que respeita os ecossistemas e as tradições populares pelas quais se mantêm dinâmicas culturais e  de comunicação que potenciam outras formas de desenvolvimento como o turismo cultural saudável, e um modo de viver mais feliz. Combater o olival e outras culturas intensivas e superintensivas é contribuir para uma vida melhor em Portugal e também para um planeta onde a vida humana e de outras espécies a curto, médio e longo prazo, seja possível. Significa colocar em simbiose, e não em oposição, as paisagens e as expressões culturais, gerando equilíbrios, numa dialética que visa uma sociedade mais igualitária, respeitando as diferenças, e por isso mais desenvolvida humanamente, uma sociedade livre da exploração do homem pelo homem e do interesse exclusivo daqueles que apenas almejam o lucro máximo no menor tempo possível.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Religião

O significado da palavra religião, no singular, é uma abstração. Não existe a Religião. O que há de facto são muitos milhões de pessoas que acreditam num deus ou numa divindade ou divindades. O que há é uma multiplicidade de religiões: hinduísmo, budismo, confucionismo, tauismo, xintoísmo, judaísmo, islamismo, cristianismo, religiões africanas, orientais, etc. Cada uma destas áreas religiosas, por sua vez, se segmenta em outras, por isso constatamos muitos cristianismos, islamismos, judaísmos. Por isso também sabemos que é impossível uma única religião universal, embora haja quem o afirme. Os estudos antropológicos e sociológicos apontam para a confirmação da probabilidade de a maior parte dos habitantes do nosso planeta serem crentes e se identificarem com alguma religião.
O que distingue fundamentalmente o real religioso do não religioso é a demarcação do sagrado e do profano. Esta inscrição merece ser estudada e por isso podemos afirmar a teologia como uma parte da antropologia, uma ciência que estuda, não o deus ou as divindades, mas, empiricamente, as vivências religiosas, tais como os rituais próprios de cada uma das religiões.
Em relação às religiões e respetivas divindades podemos posicionar-nos como, ou ateus, ou crentes ou agnósticos ou ainda, indiferentes. Todas estas posições são respeitáveis, elas versam sobre entidades que, na sua essência, não são dadas aos sentidos. Não conhecemos a figura de deus, não o vemos, não o sentimos nem o ouvimos, cientificamente falando. Mas não são necessárias tais constatações para haver crenças religiosas, basta escutarmos alguém a dizer com veemência, "eu acredito", para não ser possível negar a vivência e a evidência da religião. A religião merece o maior respeito, apesar de, historicamente, encontrarmos episódios sem conta das maiores atrocidades cometidas em nome de algumas religiões, tais como autos de fé, torturas inquisitoriais, atentados suicidas, mutilações, penitências, castigos infernais, etc.
Contudo podemos perguntar, é possível viver bem, individual e coletivamente sem religião? A resposta é afirmativa, a religião não é uma condição "sine qua non", universal, para o bem, para a justiça, para o amor, para a esperança ou para a paz. Embora haja quem afirme o contrário. Também há milhões de pessoas que não acreditam em nenhum deus e, em algumas sociedades, nomeadamente as mais desenvolvidas económica e socialmente, onde se verificam menos assimetrias, regista-se um progressivo aumento do número de não crentes. Nestas situações, as religiões têm alternativas que são as filosofias de vida não religiosas, tais como os humanismos materialistas, marxistas, existencialistas, ecologistas. Todas estas formas de pensamento e de vida permitem responder a perguntas, que de um modo ou de outro, cada um de nós faz ao longo da sua vida, tais como:
Qual a razão de ser e a finalidade da vida?
De onde vimos e para onde vamos?
Será que a vida vale a pena ser vivida?
Porquê a morte e o sofrimento?
As religiões têm respostas, muitas vezes simples, fáceis de compreender e de intuir, para estas questões, por isso compreende-se a facilidade com que proliferam certas religiões, ou outras formas de vivência do fenómeno religioso, como seitas, movimentos alternativos e tendências ocultistas. Independentemente da posição que cada um de nós assumir, creio que o essencial é que as pessoas se respeitem na sua diversidade, combatendo o preconceito racial, étnico, nacional, social, de género, sexual, político, cultural, estético. Acredito que é possível um diálogo ecuménico, de convivência e inter-religioso para uma igualdade e harmonia entre todas as religiões, que poderão promover a paz local, regional e mundial. Tal possibilidade só se efetivará se a política e a religião se mantiverem com a distância necessária para não se instrumentalizarem mutuamente, tal como prevê o desiderato das sociedades laicas que respeitam as religiões, na medida em que servem a ética universal.
Por vezes sinto que é na aparente insignificância da vida que encontro a minha vivência religiosa do mundo, por paradoxal que pareça, por uma ligação aos outros, sem ídolos, sem heróis e sem deuses. A palavra religião, cuja etimologia, mesmo que parcial, aponta para "religare", ligação, ajuda-nos a compreender que, quer queiramos quer não, estamos todos ligados uns aos outros, somos semelhantes na nossa pertença ao mundo e ao mesmo tempo ignorantes perante o mistério da vida e da infinitude do universo. Caminhamos todos pela mesma estrada, que tanto se sobe como se desce, e por ela tanto podemos encontrar o céu como o inferno, dependendo da maneira como viajamos. Talvez a melhor maneira de viajar seja a de mãos dadas, é essa, para mim, uma das facetas mais positivas e interessantes das religiões, nomeadamente das religiões cristãs, dominantes no nosso Portugal.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Ano Novo


O ano novo está aí à porta e, 

como sempre, não faltam profetas, 

adivinhos, futuristas, especialistas 

e outros coristas dos paraísos

e dos apocalipses, com máscara ou sem ela,

para nos apontarem o caminho da salvação!

Parece simples encontrar o portal

da felicidade, a janela para o horizonte

onde não há pecado nem sofrimento!

O ano que termina não se eclipsa, 

gravado será na memória universal, 

é tempo, não tem ânsias.

Os anseios são dos corpos 

sôfregos pela realização dos sonhos, 

que num ápice se desvanecem.

E nós, iludidos pelas memórias,

exclamamos, como que desadormecidos, 

já lá vai tanto  tempo!

Onde vive a criança que se perdeu no caminho?

Onde param as lágrimas das despedidas?

Onde mora a epopeia do amor?

Contaremos as doze passas,  

ergueremos as taças de espumante.

Brindaremos de cara lavada e de alma fresca,

contaremos os bons segredos uns aos outros,

aguçaremos o nosso pensamento?

Por que não respeitar  a palavra limpa e polida,

a dança da vida e a paixão do outro?

Talvez pudéssemos  desviar

os maus  augúrios e inventar

um Novo Ano a sério.