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terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Os homens não choram?

Era um vez um homem
tão homem tão homem
que, quando picava cebola,
tinha o cuidado primeiro
de colocar bem ajustadinhos
os óculos de mergulhador.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

o poder sobre as coisas

Olivier Ferrer, no texto "O tempo, a Perceção, o Espaço e a Memória" afirma que "O poder sobre as coisas é a reatualização de um saber adquirido de tal forma que a memória funcione como uma fonte de ação sobre o mundo". De alguma forma o poder que alguém exerce sobre alguma coisa, advém da consideração de que tal realidade sobre a qual se exerce esse poder é uma coisa, não tem vontade, autonomia, liberdade. Por isso, qualquer coisa sobre a qual se age, está disponível para ser instrumento, para ser manipulada, alterada e mesmo destruída. E nisso não há necessariamente nenhuma consideração moral. A realidade legitimamente coisificada ou coisa está aí disponível para o homem. "Poder" significa capacidade para dominar, alterar, mudar, esculpir, redesenhar, reutilizar, manipular, etc.. Tal capacidade só se verifica mediante a competência exercida na prática. Para tanto é necessária a memória, uma espécie de deusa imperfeita que constitui a nossa identidade e que se revela como o motor de arranque para os nossos movimentos pelos quais agimos sobre o mundo e com isso  o transformamos e nos alteramos a nós próprios. A "reatualização" do que se sabe é a manifestação da consciência, da lucidez que permite algumas crenças sem as quais não haveria probabilidade de movimento intencional ou de ação sobre o mundo.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Democracia

Quando me submeti, tal como milhões de pessoas, à vacinação contra a Covid 19, uma das falas da enfermeira que me inoculou, e que aceitei, terminava assim: se não acreditamos na ciência, em que é que havemos de acreditar? 
Sabemos que não é possível viver sem crenças, por mais simples e intuitivas que sejam. Viver conscientemente pressupõe sempre alguma expetativa positiva, alguma crença, mesmo que se seja algo pessimista.
Os conhecimentos científicos, cada um sobre o seu objeto concreto, são provavelmente, o que de mais refinado, mais rigoroso e racional se faz. Por conseguinte as ciências lógico-matemáticas, físico-naturais e humanas, merecem imenso respeito e devem servir sempre de matriz orientadora das ações humanas. Contudo, infelizmente, as ciências humanas, ao contrário das outras, são atualmente muito desvalorizadas: história,  sociologia, psicologia, filosofia, ciência política, geografia, antropologia, arqueologia. Desvalorizadas têm sido, assim, áreas  e atividades afins como a educação, a cultura e as artes. Dos alunos que tive ao longo de trinta anos, quase nenhum quer ir para estas áreas. Muitos dos meus colegas professores queixam-se do mesmo. Porque será? 

Não existe a Ciência, tal como não existe a Religião. Há ciências e religiões, sempre no plural. Do mesmo modo diremos que não há a ideologia, mas sim ideologias. As ciências, como vivências dos cientistas e daqueles que procuram compreender as ciências, não são imunes às ideologias nem a outras formas de representação da realidade, como as artes e as religiões.
As ciências são portadoras de visões parciais da realidade, são plurais, cada uma delas situa-se numa perspetiva a partir da qual contribui para o conhecimento do mundo. As ciências têm alguma informação da realidade, contudo, nenhuma delas usufrui de todos os pontos de vista ou de todos os conhecimentos possíveis acerca do mundo e da vida. As ciências são o exercício, a atividade dos cientistas, seres vivos sempre em mudança, na busca de soluções para problemas práticos ou teóricos. Tomar o conhecimento científico pelo conhecimento do ser na totalidade, significa cair num erro de tomar a parte pelo todo, o que é logicamente insustentável. Cair-se-ia no abismo da insensatez, endeusando a própria Ciência e negando a natureza dos seres humanos, entrar-se-ia no reino da superstição cuja principal característica é a  crença irracional. 
O conjunto de todas as ciências aborda todas as perspetivas possíveis para descrever, explicar, prever e transformar o mundo através das técnicas por si criadas, mas não esgota de forma nenhuma tudo o que há para saber, porque os pontos de vista podem ser infinitos. Por isso, como a realidade é inesgotável, acreditar que toda ela pode ser conhecida integralmente não passa de superstição baseada no endeusamento das ciências ou de certas ciências, uma forma de superstição entre outras.

Sinto-me sempre defraudado e triste quando, nos painéis de aconselhamento e de consulta do governo não estão representadas em equidade as diferentes áreas científicas.  Por isso, provavelmente, a gestão sociopolítica  e económica no contexto pandémico tem sido tão errática e descredibilizada. Não basta conhecer o vírus, é preciso conhecer as pessoas e fundamentalmente respeitá-las na sua autonomia, na sua inteligência.
Faz falta democraticidade e cientificidade equilibrada na determinação do que se há-de fazer individual e coletivamente. Este propósito é fulcral, também, em toda a política, não apenas pela necessidade de bem decidir para bem fazer, mas principalmente porque é  um imperativo ético e moral.

O mistério e a procura

As perguntas ou interrogações só são possíveis quando alguma coisa nos espanta ou surpreende. Quando o que vemos, ouvimos ou sentimos não está de acordo ou não se conforma com a nossa visão do mundo, temos tendência a perguntar. Também nos interrogamos quando, à primeira vista, não compreendemos a realidade que somos ou a que se apresenta no nosso horizonte. Temos que ver o mistério para procurarmos seja o que for, já que o mistério é a realidade secreta e escondida, é ainda o segredo dos deuses. Para vermos o mistério necessitamos da fé de que algo não se mostra, só a partir daqui se pode procurar, supondo que existe o que não é dado. A crença de que existe o que não é dado imediatamente, consuma-se a partir do momento em que nos deixamos surpreender ou nos espantamos. Esse espanto não nos leva à fuga como os pássaros fogem dos espantalhos, mas antes ao movimento de investigação suportado pela nossa insaciável necessidade de matar a sede do conhecimento.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

filosofia e publicidade - Benetton

Resultado de imagem para benetton philosophyHá uma marca que aprecio, não pelo que vende, nomeadamente vestuário, mas pelas formas e características das suas campanhas publicitárias. São críticas, corrosivas, provocantes, fazem-nos pensar. Levam-nos a saltar dos carris do nosso pensamento e indicam-nos horizontes criativos nos quais provavelmente nunca havíamos pensado. Tal como a filosofia.

sábado, 23 de setembro de 2017

As ideias verdes incolores dormem furiosamente

 Há um problema sempre atual que nos leva à questão do sentido ou do significado. O que é uma palavra e que relação é que tem com a coisa? As palavras podem ser ditas e por isso escritas, ao serem proferidas não são mais do que sons articulados. Qual é então a relação entre som e significado?

      Ferdinand de Saussure (1857-1913), no seu célebre curso de linguística geral revelara que o signo linguístico apresenta duas faces como se fosse uma moeda, o significante ou imagem acústica e o significado ou conceito. Nesta relação não há margem para qualquer determinismo, o signo enquanto significante é arbitrário. Não há determinação universal para a palavra na sua relação com a coisa. Por isso o mesmo objeto é designado por sons diferentes consoante a língua usada. Car, voiture, carro, coche, designam um e apenas um conceito, o de carro ou automóvel. Não há portanto nenhuma ligação natural entre os sons e o objeto que designam ou indicam.
      Contudo as palavras surgem organizadas quando são proferidas, essa ordem é sintática e pode variar de língua para língua. A forma ou sintaxe e o conteúdo ou semântica geram infinitas possibilidades de combinação de palavras o que permite infinitas frases. Mas não se pode analisar um discurso, sucessão de frases, prescindindo de nenhum dos dois campos, sintático e semântico. 
      Se o fizermos corremos o risco de encontrar sentido onde ele não existe o que é absurdo e paradoxal. Atente-se no célebre exemplo de Noam Chomsky dos anos 50 do século xx: "Colorless green ideas sleep furiously", traduzindo, "As ideias verdes incolores dormem furiosamente". Do ponto de vista sintático poderemos dizer que se trata de uma frase bem formada, o que já não acontece se tomarmos a frase na perspetiva semântica, isto é, do seu conteúdo material.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

NOITE AZUL

Vi claramente, numa noite azul,
um espetáculo digno de nota:
numa parede branca como a cal,
uma senhora aranha toda ciosa,
talvez esfomeada, tecendo a teia.

Esvoaçava sozinha  uma borboleta notívaga,
alegremente ao som da aragem, sob a luz
da lua a ofuscar o titilar dos pirilampos;
voltejava num vórtice hilariante sem fim
como o parafuso de Arquimedes, o físico.

Escondeu-se o aracnídeo no vão da alvenaria,
enquanto a mariposa batia as asas ousando
desafiar o destino perante os olhos ocultos.
Voava e revoava embriagada na sua beleza
como se fosse a rainha do universo infinito.

Nenhuma das partes desistiu do seu fado:
ao afastar-se o lepidóptero, avança a aranha,
aperfeiçoando com destreza, em rápidos movimentos,
as malhas da sua rede mais fina e mais forte,
com o escondido olhar esfíngico de caçadora.

Num voo mais ousado e temerário,
à procura da luz, fica presa a mariposa,
com as asas coladas na teia quase invisível.
Foi transformada num rolinho apetitoso,
enleada como uma múmia egípcia.

E assim termina a história da borboleta
que se julgava livre e dançava alegremente
à procura da luz numa bela noite azul.
Não conseguiu, por vaidade, fugir ao destino:
servir de repasto para uma aranha sagaz.





domingo, 25 de junho de 2017

solidão

no centro do deserto
na noite mais funda do universo
só pérolas de estrelas distantes
átomos de gelo e ar veloz
me tocavam sob  luz transcendente 
nas ondas das dunas de estranha vida
deliberei atravessá-lo contigo
junto aos teus passos caminhei
aprendi a não ter medo da morte
a enfrentar a fúria dos fanáticos 
dos fantasmas,  das fomes, misérias e hipocrisias
teus olhos me vestiram na planura dos medos
tuas mãos me ofereceram o vinho puro
procedente de uvas cor de sangue 
numa taça de cristal 
sibilando amor em pleno vento

quarta-feira, 21 de junho de 2017

If Minds Had Toes - (O dia em que Sócrates vestiu jeans)

Wook.pt - O Dia em que Sócrates Vestiu Jeans
Sugestão de leitura


Título: O dia em que Sócrates vestiu jeans

Autora: Lucy Eyre

Data da 1.ª edição: Abril de 2007

Sobre a autora:

Lucy Eyre cresceu em Londres e estudou Filosofia na Universidade de Oxford. Conviveu desde muito cedo com escritores e argumentistas por ser filha do realizador cinematográfico Richard Eyre. Uma doença súbita conduziu-a a uma forma diferente de ver a vida. Dedicou-se, assim, à escrita.




Sobre o livro:


            O título da edição inglesa, “If Minds Had Toes”, (na edição brasileira “O Pensamento Voa - Descobrindo o prazer da filosofia”) é bem diferente do da edição portuguesa da “Casa das letras”. Talvez os jeans sejam símbolo de bem-estar, de prazer de viver e de liberdade. Sócrates, celebérrimo filósofo que deu a vida por um ideal de justiça, ao vestir jeans estará a comprometer-se numa forte e actual ligação à juventude, para confirmar o seu verdadeiro carácter. Lembremo-nos de que uma das acusações que o levaram à condenação à morte foi a de corromper a juventude, o que confirma a sua ocupação pedagógica.
Os temas fundamentais da filosofia presentes no Mundo das ideias (uma alusão à filosofia do célebre filósofo grego, Platão, e ao seu mestre que nada escreveu, Sócrates), a moral, o livre-arbítrio e a felicidade, são alvo de uma sucessão de diálogos entre Bem Warner, um adolescente típico, Lila, uma mulher jovem e atraente, e os grandes e determinantes pensadores-filósofos de sempre. Ela leva-o, por meio de um bizarro convite, para um lugar inteiramente desconhecido, o “Mundo das Ideias”, cujo presidente é Sócrates, o mestre de Platão. Curiosamente, Sócrates fez uma aposta com o seu rival e grande filósofo, Wittgenstein, filósofo austríaco considerado um dos maiores do século XX (contribuiu com diversas inovações nos campos da lógica, filosofia da linguagem e epistemologia.). Sócrates tem todo o interesse em ganhar a aposta e, para tal, terá de convencer Ben Warner de que a filosofia pode melhorar a sua vida. Então o nosso jovem acaba por entrar num mundo paralelo e por encetar uma viagem mental às grandes questões da filosofia que são, entre outras: O que é o mundo? O que é a felicidade? A morte é ou não o que de pior nos pode acontecer? Teremos vontade própria ou obedecemos a um destino preconcebido por um ser que tudo criou e em tudo manda? Em que é que nós podemos acreditar? Qual a diferença entre verdade e mentira? Porquê os dilemas morais?
Por exemplo, a propósito do que é errado ou não e das regras morais:
“- Se é possível dizer que não faz mal infringir uma regra (…) se com isso evitar um desfecho verdadeiramente mau, então qual é a vantagem de ter regras? Ou as regras são invioláveis e é por isso que as temos, ou podem, por vezes, ser infringidas, caso em que deixam de ser regras.
- Num dilema moral como deve ser (…) seja o que for que fizermos envolve sempre fazer qualquer coisa errada. É óbvio que não existe uma resposta fácil. Se houvesse não seria um verdadeiro dilema.” – (pág. 229)
Realmente o nosso jovem escapa a uma vida entediante e desperta para a sua importância através da aprendizagem dos conceitos básicos da filosofia. Para além disso conclui, ou faz-nos concluir, que a filosofia é inevitável. Toda a gente necessita de uma filosofia de vida. Toda a gente precisa de saber em quê e porquê acreditar nisto ou naquilo. Toda a gente tem um caminho a trilhar e sem filosofia não sabe nem o porquê nem o para quê desse caminho que é sempre resposta a perguntas existenciais.

      Este livro aconselha-se a toda a gente, nomeadamente às pessoas inteligentes, divertidas e cativantes, mas também àqueles que, não o sendo, apreciam a originalidade, a diversão e a inteligência. No fundo, este livro mostra-nos que qualquer pessoa pode ser ensinada a pensar. Para tanto basta lê-lo e deixar-se encantar com a fluidez da escrita de  Lucy Eyre.

Boa Leitura.

terça-feira, 20 de junho de 2017

De que se ocupa a filosofia?

A filosofia ocupa-se de diversas questões, classificadas segundo domínios específicos – o pensamento, o ser, o conhecimento, a ciência, a moral, a linguagem, a beleza, a existência, Deus, etc. A estes domínios correspondem disciplinas filosóficas particulares. Todas estas interrogações e inquietações nos revelam que as preocupações da filosofia não excluem nenhuma das dimensões em que se move a existência humana. Kant resumiu em três interrogações o âmbito da filosofia: Que posso saber? Que devo fazer? Que me é permitido esperar? Todas estas questões podem ser sintetizadas numa só: O que é o Homem? A resposta à última questão pressupõe a resposta às anteriores. O Homem é o grande mistério do próprio Homem, já que todos os mistérios decorrem, afinal, das suas inquietações. Importa, por conseguinte, não criar fronteiras estanques entre os diversos problemas filosóficos. Eles encontram-se inter-relacionados, devendo ser abordados de forma unitária e integradora, já que dizem sempre respeito àquele que os formula: o ser humano.

domingo, 28 de maio de 2017

O que torna a ciência tão especial e confiável?

A ciência é tão especial porque é o conjunto das áreas do conhecimento  que se acredita ser mais próximo da verdade. É ao mesmo tempo a atividade que responde com lógica às perguntas sobre o modo como o mundo funciona. Responde também à curiosidade inata dos seres humanos e produz tecnologias com um alto grau de eficácia na resolução de problemas humanos relacionados com a saúde, com a organização das sociedades, com a aprendizagem, com os modos de produção, com as comunicações, com o planeta terra, com os animais, com os seres humanos em particular, com o universo. A ciência ajuda os seres humanos a viverem mais e a compreenderem-se melhor, de tal forma que, em determinadas áreas o seu grau de previsibilidade é elevado. A ciência divide-se em áreas, ciências sociais e humanas, ciências físico-naturais e lógico-matemáticas. As ciências são tão especiais também porque são interdependentes. Os cientistas não querem deixar nada de fora do seu objeto de estudo. Para cada área científica há um objeto de estudo diferente, a realidade pode ser vista, estudada, analisada de muitas perspetivas, pode ser decomposta em partes muitíssimo pequenas. Por isso, para cada área científica há um método próprio baseado num método geral, que de certa forma torna a ciência produtiva, rigorosa, preditiva. A ciência estuda objetos particulares e por isso ela pretende ser objetiva e para atingir essa objetividade, o que lhe garante uma maior proximidade  à verdade, faz-se, na maior parte dos casos, com investigação em equipa, o que lhe confere uma característica impreterível: a intersubjectividade. Os métodos das ciências em determinadas áreas levam à formulação de proposições que expressam leis ou regularidades que são aceites universalmente. Este caráter universal das leis científicas dá-lhes uma enorme força e por isso também contribui para que haja por elas um enorme respeito. Ao mesmo tempo os cientistas têm a sensação de que o seu objeto de estudo é inesgotável, por um lado porque muda o objeto, por outro porque muda o cientista e todo o arsenal de instrumentos que lhe permite ver mais fundo, com mais rigor, eficácia e minúcia. Este caráter da ciência que se sabe tarefa sempre inacabada confere-lhe um grau de humildade que a torna meritória, confiável e respeitável.

domingo, 14 de maio de 2017

LIBERDADE

A liberdade é o bom uso do livre-arbítrio. O livre-arbítrio é a possibilidade de escolher entre o bem e o mal. O livre-arbítrio fundamenta-se no inesgotável significado das coisas e é expressão da vontade, a liberdade resulta de uma faculdade a que chamamos razão. O livre-arbítrio caracteriza todo o ser humano, por isso se pode dizer que os humanos, que nem sempre são  livres, têm tendência para tal. Como humano não  escolho contorcer-me quando sinto uma dor aguda fabricada pelo meu cérebro. Não sei se será possível encontrar a origem da dor nem se é exatamente física ou psicológica. A dor pode ser uma contração dos músculos devido a uma combinação provável de sinapses. Não somos, de facto, inteiramente livres, mas temos sempre alguma margem de liberdade nas nossas vidas. O livre-arbítrio faz o mundo interessante e, tal como a arte, é inevitável, torna tudo inaudito e possivelmente maravilhoso. Mas só a liberdade faz de nós verdadeiramente humanos. A liberdade não é viver sozinho, não é estar contra os outros, competir contra os outros para lhes ganhar. A liberdade é ser solidário, é viver e caminhar juntos, é partilhar tudo o que pode ser partilhado, como a riqueza, por exemplo. A liberdade é ser justo e usufruir da justiça, contribuir com o que se pode dar e beneficiar  do que se deve receber. A liberdade é responsabilidade, é respeitar os outros  e as leis que resultam do respeito recíproco de todos por todos. Ser livre é não insultar, não humilhar, não roubar de nenhuma forma, é ser consciente do seu valor, não ter vaidade nem ser invejoso, não querer ser mais do que os outros, não querer nunca ser o dono disto tudo e muito menos de alguém. Ser livre é trabalhar incessantemente contra a escravatura contra a maldade, contra o sofrimento, é não se contentar com pouco do que é humanamente bom. Somos livres quando temos a possibilidade de escolher sem submissão, quando a nossa vontade se pode juntar a milhões de outras vontades insubmissas, por exemplo em eleições. Eleger é escolher; a boa escolha é aquela que mais contribui para a liberdade de todos, para a maior e mais equitativa partilha possível. É isso que pode acontecer no próximo domingo. Por isso eu vou escolher para ser mais livre do que sou e dar o meu simples e pequenino, a minha gotinha de água, mas indispensável contributo, para que haja mais liberdade e mais justiça no mundo, para que a riqueza seja equitativamente distribuída, para que todos tenham ar puro para respirar e água potável para beber, trabalho para produzir, alimento para viver e futuro saudável para quem está agora a nascer.

terça-feira, 11 de abril de 2017

A escola e a educação

Segundo a etimologia, educar, significa “conduzir para fora” ou "direcionar para fora”. O termo latino, educare, é composto pela união do prefixo ex, que significa “fora”, e ducere, que quer dizer “conduzir ou “levar”. O significado do termo (direcionar para fora) era empregado no sentido de preparar as pessoas para o mundo e viver em sociedade, ou seja, conduzi-las para “fora” de si mesmas, mostrando as diferenças que existem no mundo. 
   Fonte: http://www.dicionarioetimologico.com.br/educar 

 O tema "educação" é tão velho como a humanidade e é problemático porque há profissionais da educação. Querem bons salários, dignidade, carreira, reconhecimento. Justamente, tal como quaisquer outros profissionais de outras áreas. Profissionais são aqueles que auferem uma remuneração pelo exercício das suas atividades. Como há sempre dinheiro envolvido na “educação”, porque há profissionais, mantém-se a polémica do valor pecuniário dessa atividade. É uma questão que não se resolverá definitivamente dado que estão em jogo interesses contraditórios: os de quem paga e os de quem recebe. A solução possível assemelha-se a uma negociação permanente. 

     As palavras professor e profissão estão intimamente ligadas: professor significa, desde longa data, aquele que apresenta novos assuntos. A novidade é condição sine qua non para se ser professor. Isto implica necessariamente formação permanente ou contínua. Mesmo que não seja formal ela é impreterível para a sobrevivência dos professores. Profissão é um termo que provém do latim professione, que, para além de significar “declaração”, também significa “ofício”. Na Roma antiga os profissionais estavam agrupados em associações e na Idade Média formavam associações religiosas e de segurança social às quais prestavam juramento.
     -Fonte:https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/professor-e-profissao/20457 

     Os professores exercem quase sempre a sua profissão na escola. Esta não é um local de trabalho como tortura, é um espaço relacional onde as pessoas exercitam e treinam o corpo e a mente com vista a serem educadas. Professores, alunos, administrativos e assistentes operacionais, convivem num espaço comum onde deverá acontecer sistematicamente a educação de todos. A disponibilidade para ensinar e aprender é a essência da escola. A escola não é uma estrutura arquitetónica, não é um edifício, é um sistema multipolar de relações humanas de grande complexidade. Exige formação moral e fundamentação ética de todos. Espírito crítico, entreajuda, solidariedade e boa comunicação, são características da Escola (com E grande). Às vezes defende-se a escola como preparação para o futuro, o que não passa de um truísmo, todos os momentos de qualquer vida, dentro ou fora da escola, são preparação para o futuro. Ninguém conhece nenhum futuro mas sabe-se que o tempo que há de vir deverá ser melhor do que o passado. Para projetar o “futuro” é necessário analisar as memórias e querer saber o que se quer. A escola pode ajudar a preparar melhor o futuro. Outra interpretação que se dá da escola é que é um meio para atingir um fim, isto é, um instrumento de instrução. Mas, se a escola são as pessoas relacionando-se de acordo com certas regras, não faz sentido ser considerada instrumento seja do que for. As relações humanas não são instrumentalizáveis, se o forem deixarão de ser relações humanas. Passarão a ser relações desumanas baseadas na instrumentalização, na coisificação do outro, na lógica do dominador/dominado, colonizador/colonizado. 
     A escola deve ser, como qualquer atividade humana, prioritariamente, um fim em si mesma, e não apenas um meio para atingir fins exteriores a si própria. O propósito da escola é também preparar para a vida, para o mercado de trabalho, para qualquer outra escola. A escola é vida. Toda a gente, por viver, já está preparada em maior ou menor grau para a vida ou para o mercado. A vida humana é feita de trocas químicas, biológicas, sociais, culturais e económicas. Por isso, a vida prepara a vida. 
     A escola só pode ser expressão de liberdade e por isso de responsabilidade, de cultura, de ciência e de criatividade, se não for assim não será escola, mas outra ordem/desordem qualquer. A Escola organizada, elegante e com harmonia é muitíssimo mais interessante e aparentemente mais difícil, tal como uma orquestra. Não tem que ser um paraíso ou uma utopia, estes conceitos dizem respeito apenas a realidades simbólicas que fazem com que se avance no sentido do horizonte. São uma espécie de motor que leva a que, positivamente, pensemos e andemos por uma inquietude de só nos sentirmos bem onde não estamos. Por isso professores e alunos viajam de muitas maneiras. O professor é um viajante que mostra aos alunos algumas das suas ideias sobre as suas viagens físicas e mentais. Exerce o seu ofício na escola e aí faz as suas declarações a todos quantos os necessários, não apenas aos alunos. Não é um colonizador dono de toda a sapiência a impor as suas verdades, também não é um colonizado, a sua função não é obedecer, mas ensinar. O professor procura, tanto na vida como na sua área específica, estar na crista da onda. Procurar vistas largas e a linha do horizonte, dirigir-se para lá, sem perder a paciência, com os alunos remando consigo, é o preceito fundamental do professor, assim consegue mostrar algumas novidades aos jovens acompanhantes da sua jornada. 
     Há quem encare a profissão de ensinar como uma missão, o que me faz lembrar o filme "Missão" de Roland Joffé de 1986. A ação decorre no século XVIII, na América do Sul, onde o padre jesuíta Gabriel (Jeremy Irons) dirige uma missão na tentativa de converter os índios da região. Ora, o professor não é um missionário e não tem por função converter ninguém. Para isso teria de ser o contrário de um professor: um manipulador. Os alunos não são índios à espera de conversão, são pessoas à procura da sobrevivência com o menor esforço, o maior prazer e a menor dor, isso é natural. O exercício do professor é ser modelo ético na relação com os outros, nomeadamente com os alunos, e exercer a sua "profissão de fé", que de algum modo se baseia em crenças verdadeiras bem justificadas. Algumas são as seguintes: os alunos são seres vivos racionais e emocionais em crescimento, alguns dados da neurociência mostram que o seu cérebro só está “completo” por volta dos 27 anos de idade; os professores, tal como os alunos e toda a gente, estão em constante mudança, o que mostra que não há relações fáceis, aquele que era ontem um, hoje é já outro; a relação professor-aluno está sempre contaminada positiva ou negativamente por outros profissionais; muitas mudanças físicas e mentais são dolorosas, mesmo as desejáveis; a relação em que um dos polos (alunos ou professor) ou os dois, mostram inflexibilidade total, é violência física ou psicológica; numa relação ambas as partes devem ser flexíveis, porque assim são mais fortes e resilientes; numa relação o outro nunca deve ser instrumentalizado, as pessoas não são coisas; o próprio não se deve instrumentalizar a si, estaria a ser um exemplo antiético; a investigação permanente faz-nos sentir melhor e é imprescindível. 
     Muitas mais crenças verdadeiras com boas justificações poderiam ser apontadas, mas se pesquisarmos, encontramo-las em diferentes áreas científicas e filosóficas, nomeadamente psicologia, sociologia, ética, psicopedagogia, didática, biologia, etc.. 
     Em jeito de conclusão: o propósito da escola, como relação de referência, é o respeito absoluto entre todos os seus atores, a vida aí vale pena e deixa saudades, de tal modo que ninguém hesitaria em repetir as experiências que nela viveu. A escola assim é uma escola intemporal, a aula ou a atividade passou demasiado depressa e há vontade de repetir a experiência. É uma escola com imaginação porque tem razão e emoção. 

Pedro Reis 
de Abril de 2017 

terça-feira, 7 de março de 2017

O louco da colina

Sou a luz que entra em mim,
a calma do frio outono sem fim.
Sou o que vejo, o que sinto,
o doce veludo das minhas botas,
a transparência das lentes por onde olho,
o verde das folhas quietas de que respiro.
Sou as formas das tuas mãos,
as ondas do teu mar 
e os pensamentos dos teus peixes.
Sou o louco da colina a sentir o vento,
a ver o pôr-do-sol enquanto a terra gira.
Sou o trinado dos pássaros invisíveis,
a leveza do corredor incansável na longa praia,
a maresia dos crustáceos e a maré vazia.
Sou do tamanho dos teus olhos,
cujo brilho é a luz do mundo.
Não sei o que me é dado,
não sei o que sou, quem sou, 
nem para onde vou;
por isso a minha vida agrada-me
como o voo suave de um dente de leão
semeando brilho branco no ar,
caindo, 
         caindo, 
                  devagar, 
                            devagar.



sábado, 4 de fevereiro de 2017

coisa em si

           Kant apontou-nos no final do século XVIII uma evidência não evidente, a coisa em si, a autêntica realidade que não é cognoscível e é ao mesmo tempo a condição e o fundamento do conhecimento. Kant não dispunha dos instrumentos de que hoje nos servimos para sondar tanto o que nós somos como o que nos rodeia: telescópios como o Hubble, lançado em 1990, tomografias computorizadas, microscópios eletrónicos, sismógrafos de alta sensibilidade, etc. As ciências neurológicas praticamente não tinham nascido, Darwin e Freud também não. 
     Kant acreditava na existência de uma alma racional e numa razão pura e por isso era um otimisma irreprimível. Tudo o que fosse mau e imoral tinha uma explicação: a inclinação fundada na nossa animalidade estaria sempre em confronto com a razão pura prática.
     Tal como Platão, Agostinho e  Descartes, Kant deu-nos a entender que o maior dos males é a ignorância. Hoje ainda há quem assim pense. Por isso o conhecimento e tudo o que lhe diz respeito, a gnosiologia e a epistemologia continuam a ser um problema de grande monta que deverá ser se não resolvido, pelo menos mais bem compreendido.
A coisa em si hipostasiada por Kant teve outros desenvolvimentos como, por exemplo, a vontade no sentido de Schopenhauer, que ia contra o mundo como representação e significava o sentido da vida.
     Mas nós, aqui e agora, no século XXI, perguntamo-nos:
fará sentido exigir o conhecimento como forma de assegurar a moralidade? Há ou não conhecimento seguro, isto é, será legítimo manter a realidade como um mistério insondável, a coisa em si, de que fala Kant?