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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

individualismo & consumismo

 Paira no mundo o espectro do relativismo, da insegurança e da incerteza. Poucos ousam dizer, por mais especialistas que sejam, uma projecção do futuro imediato ou distante. Abundam, por isso, muitas formas de esconjurar a realidade: o cinema e a literatura fantásticos, a ficção científica, a proliferação de religiões  e de seitas religiosas, os rituais ligados a acontecimentos mediáticos como o futebol, os mega-concertos de angariação de fundos para causas humanitárias e caritativas, a política espectáculo, a guerra em directo,   a violação consentida da privacidade (big brother), a celebração de dias mundiais: da mulher, do não fumador, dos direitos humanos, da criança, da liberdade, dos refugiados, etc., etc..
  Muita gente, ao que parece, acha que este não é o melhor dos mundos. Contudo, nem sempre foi assim, Leibniz (1646-1716), por exemplo, imbuído num espírito teológico e racional, admitiu que Deus previu tudo e cuidou de tudo de antemão. Nas obras divinas haveria uma harmonia e uma beleza já preestabelecida. Em cada momento estaríamos a viver sempre no melhor dos mundos possíveis. 


Desde a antiguidade que nos foram  propostas utopias às quais não conseguimos ligar-nos nem desligar-nos, provavelmente por as termos estudado pouco: desde a República de Platão (428 a.C. 348 a. C.) à Cidade de Deus de S.tº Agostinho (354-430), passando pela Utopia de Thomas Morus (1478-1535) até à sociedade comunista de Marx (1818-1883).  Hoje poucos crêem na realização das utopias e igualmente poucos  estão convictos de que este é o melhor dos mundos possíveis. O espírito dos séculos XVII e XVIII, não é o espírito do século XX nem o do século XXI. Não vivemos no tempo do optimismo. Pigmaleão e Galateia são mitos do passado, as nossas expectativas não são positivas, por isso vive-se "um dia de cada vez" como se já amanhã fosse acabar o mundo, ou pelo menos, o mundo individual de cada um. O valor absoluto é aquele  que afirma que a vida é fugaz, efémero e acidental, por isso há que viver o presente na perspectiva do máximo prazer por unidade de tempo. Daí que haja um apelo constante à sofreguidão para o consumo.


 Vivemos na sociedade de consumo, tal como a analisou Jean Baudrillard (1929-2007). A  sua essência caracteriza-se por mais produção e mais consumo, principalmente dos "bens" materiais, habitualmente associados às novíssimas tecnologias. A isso corresponde o famigerado crescimento económico que é um dos mitos do século XXI.  Já a obra "a era do vazio- um ensaio sobre o individualismo contemporâneo" de  Gilles Lipovetsky (n. 1944, 67 anos) alertava para o vazio em que se vivia no século XX, fundamentalmente vazio de valores, ausência de referências morais e éticas. Para colmatar esse vazio o homem lançou-se na ideologia do consumismo para tentar restabelecer o equilíbrio "homeostático" e sentir-se mais revigorado. As democracias também se deixaram levar por forças ultra-liberais, representantes daquela ideologia dominante. Os bens culturais, teatro cinema, música, literatura, etc., foram também levados na onda do consumismo e transformaram-se em produtos vendidos em ciclos, packs, kits, pacotes, etc. Surgiram infernais panóplias de produtos de usar e deitar fora, os descartáveis, desde a simples máquina de barbear até ao telefone móvel. Com isto cresceram os atentados aos ecossistemas. Cada consumidor deixa atrás de si, em cada dia de consumo, um conjunto de detritos, altamente poluentes, sendo que muitos deles nem sequer são reciclados ou recicláveis. Tudo isto aconteceu devido ao grande poder dos media ( a televisão tem como principal função preparar o cérebro do telespectador para o anúncio seguinte) na influência das escolhas de todos os tipos de público: há segmentos de mercado para todos os produtos, estão estudados, calculados, previstos. As ciências humanas, principalmente a sociologia e a psicologia, criaram e continuam a criar os instrumentos necessários para perceber como é que se pode cada vez mais transformar seres humanos em títeres. Uma bebida "zero" ou um detergente "três em um", marcam uma nova necessidade e têm sempre um público comprador. Proliferam sistematicamente as campanhas com o apelo incessante ao sexo, à sensualidade, à alegria, à emoção colectiva. Pode comprar-se a felicidade expressa no sorriso de pessoas jovens e belas dentro do automóvel que tem tudo: ar condicionado, estofos de pele, jantes de liga leve, air-bags, faróis de nevoeiro, alarme, sensores de estacionamento, desembaciador automático, limpa pára-brisas inteligente, suspensão computorizada, computador de bordo que diz a todo o momento a temperatura interior e exterior, o número de quilómetros que pode percorrer até ao próximo posto de reabastecimento, etc.,  GPS, ligação ao mundo inteiro pela net, radio, TV, ligação USB, etc, etc.. Um automóvel é o mundo. Possuir tal maravilha da tecnologia, produzida  a partir da mesma ciência que cria os satélites e as naves espaciais, é como ser dono do mundo, ter o mundo a seus pés, usufruir de um poder imenso, ser alvo de todas as invejas, arrasar egoisticamente, poder ser brutal. É este homem invejado e idolatrado como brutal, não pelo que é, mas pelo que tem, que muitos querem ser. A publicidade enganosa, sempre provocante, convoca, seduz, convence: "tu queres, tu sabes, tu podes". Surgiu uma nova fórmula identitária: ser = ter, isto é, eu sou o que eu tenho.  Eu sou para os outros aquilo que eles sabem que eu tenho. Eles sabem que eu tenho o que exibo como meu e que não é deles, o que eu exibo é privado, os outros estão privados da sua posse, do seu uso, são alienados dos meus bens que são só meus e de mais ninguém.


Perguntamos, neste início do século XXI, como é que se chegou a tamanho egoísmo, a tão grande relativismo? Será este um modelo ideológico humanamente sustentável a longo prazo?










segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Impressões

Magnífico dia. Sol, imensa luz, leves chilreios de pardais, tremelicar breve das folhagens das laranjeiras. Suave brisa matinal. Calma e encanto. Ontem a lua apresentou-se, tal como anunciaram os astrónomos de serviço da república, brilhante, laranja e luminescente, risonha e solitária. A nossa amiga lua, musa de poetas, reguladora das marés e inspiradora dos lobos. Nas noites de lua cheia as grávidas parem mais, os hospitais materno-infantis não têm mãos a medir. Rasgam-se os ventres, ecoam gritos de dor, semeiam-se prantos de alegria. Os astrónomos, figuras mediáticas que se vão popularizando, lançam nas ondas hertzianas os seus laivos de conhecimento, as descrições, os efeitos, com o infinitesimal rigor, com a sua graça, na esperança de acicatar as mentes ignaras agora, e quem sabe, esclarecidas amanhã.
Mas há também os astrólogos, mais e mais consultados, com previsões encomendadas, já que nesta rebelião das massas todos querem saber o futuro. Ler o passado é oneroso, por isso encomenda-se, por que não on-line, a antecipada descrição do mundo, onomatopeia dos ribombares vindouros. Enquanto isso, a sul do mediterrâneo, entre o Egipto, o Sudão, o Chade, o Níger, a Argélia e a Tunísia, o coronel Kadaphi, na sua mediática e lúgubre poltrona, insurgiu-se contra o colonialismo ocidental e declarou todo o mar mediterrâneo zona de guerra. Mais uma contribuição para o inculcar do macrossistema psicológico nas mentes anónimas que constituem a horda da humanidade. Parece evidente que a esta hora Kadaphi já foi enterrado sem honra nem glória num qualquer buraco do deserto. À mesma hora, na capital do ex-império português desenhou-se a vigésima primeira maratona, para a qual olhei, por breves instantes, através dessa caixa negra a que se chama televisão. A competição e o recreio, o convívio, a saúde e a política, o amor e a beleza. Quilómetros a correr na senda das pegadas da sobrevivência do homo sapiens para matar as saudades inscritas no código genético da evolução. A isto se chama meia maratona de Lisboa. Escutei entretanto la turca de Mozart, sonata em três movimentos. A marcha turca, inscrita no filme "as férias de Mister Bean" e que lhe transmite a emoção e a cadência, o ritmo que faz marchar a mini meia maratona de Lisboa. A música que havia sido composta por volta de mil setecentos e noventa e três em Viena ou Salzburgo por Wolfgang Amadeus Mozart imitando as janízeras turcas, é o pano de fundo para um dia alegre e feliz. O melhor do mundo são as crianças, o sentido da vida, o futuro radioso. O sol, o sal da vida, interligando todas as mónadas. O uno e o múltiplo, já que o mesmo é o caminho a subir e a descer, a diferença é o sentido. Vector inscrito numa direcção, seta de cupido, atravessando o conteúdo e o continente, marcando, pelo silvo mudo, os trilhos da harmonia universal. A música celestial que todos os seres ouvem e que apenas os poetas e os pensadores conseguem escutar. Oiçamos a música tocada por guitarra clássica:

https://www.youtube.com/watch?v=26HLgXWF-Co

De manhã a brisa soprara veloz e os moinhos de vento espanta pássaros giraram ininterruptamente como se galopassem à procura dos culpados dos prejuízos dos quintais. Talvez se tenha feito justiça e agora vive-se a bonança, a calma, para que a sesta corra bem. Encontram-se paradinhos como a fêmea depois da cópula, com a satisfação feliz e inconsciente que originará nova organização material que conduzirá aos caminhos do futuro. O que é natural treme, iridesce, emite e recebe os eflúvios da comunicação intermonádica. O que é artificial descora, pára, emudece, anuncia a síntese morta dos combates entre os vivos. Irrita, espanta, morde e asfixia. Onde te encontras mundo natural? O progressivo apagão do fervilhar mirífico inunda os quatro elementos. A terra morre, a água empalidece, o ar torna-se irrespirável e o fogo já não arde. Para onde foste tu musa do universo? Porque te esvais como se encontrasses a tua antimatéria? Onde estão o amor e o ódio? A sede de vingança positiva, motor do progresso civilizacional, da história das aldeias e das nações, espera ansiosamente pela epifania. As musas eclipsaram-se e neste jogo do esconde-esconde, erramos, quais astros perdidos, à espera de um transístor milagroso que aumente os sinais dos quatro originais elementos. Assim regressaríamos  à linguagem do início dos tempos, à palavra de honra, à ausência do preconceito e dos conceitos máscara dos seres, ao lume vivo na clareira da floresta que afasta o véu da mentira.  Regressaríamos ao paraíso antes de Adão e Eva, à palavra que desvela e cuida, ao amor dito e feito, às carícias ontológicas, aos bastidores do ser, ao tempo sem balizas, ao fluir heraclitiano dos elementos na sua linguagem sempre invulgar, poética, bela e verdadeira.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Dia mundial do livro

O chamado mundo ocidental é, provavelmente,  o que mais se desenvolveu do ponto de vista científico e técnico, a partir do século XVII.  As suas raízes remontam à Grécia antiga onde surgiu o pensamento que inventou a palavra "Democracia" e onde progressivamente se passou de uma conceção mítica/religiosa a uma conceção filosófica/científica do universo, do mundo e da humanidade. A partir da matriz greco-romana e judaico-cristã desenvolveu-se um modo de organização cultural e político-social tendente a reconhecer e a incentivar a cidadania e a liberdade. Foi o mundo ocidental que criou a globalização. Foi aqui que Gutenberg, no século XV, desenvolveu um sistema mecânico de tipos móveis que deu início à revolução da imprensa e que é amplamente considerada a invenção mais importante do segundo milénio que muito contribuiu para a proliferação dos livros. 
O mundo ocidental produziu ciência e tecnologia, arte e religião, mas também peste, fome e guerra. Criou duas guerras mundiais, e muitas outras de que temos conhecimento, e agora uma guerra terrível na Europa, insegurança global, armamento atómico. Produziu a declaração universal dos direitos humanos, literatura, poesia, música, arranha-céus, autoestradas, aviões supersónicos, viagens interplanetárias. Proclamou o direito à autodeterminação dos povos. Originou a poluição visual, acústica e ambiental e ainda a possibilidade do superpovoamento do planeta, ultrapassámos já os  sete mil milhões de indivíduos e estamos próximo do oito mil milhões.
No campo da complexidade do desenvolvimento das sociedades humanas não há argumentação válida para fixismos e para imposição de modelos. Outras civilizações e culturas, igualmente legítimas, são resultado de um processo histórico e social igualmente rico e complexo. A linguística mostrou-nos que não há línguas mais importantes do que outras, os crioulos de base portuguesa são tão línguas como o inglês ou o português. Todos os povos são culturalmente civilizados, ainda que em alguns ainda persistam certas práticas tradicionais de violência explícita como, por exemplo, a condenação à morte por lapidação e a excisão do clítoris. Toda a violência é eticamente reprovável porque contraria a coexistência e a continuidade da vida sem a qual nada terá sentido. 
Por isso nenhum mundo, ocidental ou oriental, setentrional ou meridional, tem qualquer argumento válido para  impor os seus modelos, porque todos os mundos são acidentais. Toda a imposição é violência por muito ténue que seja, toda a violência humana contraria a dignidade humana, também por isso, temos esperança de que o mundo não seja apenas a fenomenalização da caixa de Pandora dado que a violência também é acidental. Nos tempos que correm é cada vez mais importante recorrer a fontes diversificadas de informação, não ver apenas uma perspetiva dos problemas, sob pena de ficarmos sujeitos a uma caricatura da realidade dos factos e dos argumentos, arriscando-nos a não ter a mínima ideia das causas próximas e remotas, bem como das consequências imediatas e de médio/longo prazo dos acontecimentos. 
Hoje é o dia Dia Mundial do Livro. Talvez fosse bom aproveitarmos para ler autores, pensadores, escritores, políticos, cientistas,  poetas, que são, muitas vezes, severamente criticados na praça pública por quem não os leu ou por quem parece que não os leu. Talvez assim contribuamos para criar um mundo mais verdadeiro, menos preconceituoso e, de facto, mais livre, para todos. 

Boas leituras.


Ética e Moral

Como é que a moral se pode transformar na ética?


O psicólogo Lawrence Kohlberg (1927-1987) propôs-nos três grandes níveis de desenvolvimento moral, cada um composto por dois estádios. Estes três níveis constituem diferentes tipos de relações entre o sujeito e as regras e as expectativas da sociedade.

O primeiro é o nível da moralidade pré-convencional que diz respeito à maioria das crianças com menos de nove anos, a alguns adolescentes e a um grande número de criminosos, adultos ou adolescentes. Neste nível as regras e as expectativas da sociedade são exteriores ao sujeito.

O segundo é o nível da moralidade convencional que diz respeito à maioria dos adolescentes e adultos. Aqui o sujeito interiorizou as regras e as expectativas dos outros, nomeadamente as das autoridades.

O terceiro é o nível da moralidade pós-convencional. Diz respeito a uma minoria de adultos a partir dos vinte anos de idade. Neste nível o sujeito distanciou-se das regras e das expectativas dos outros e define os valores em termos de princípios universais livremente escolhidos.


No nível da moralidade pré-convencional o primeiro estádio rege-se por uma orientação punitiva e pela obediência à autoridade: para evitar as punições que são temidas como qualquer outro estímulo aversivo, o sujeito obedece a pessoas investidas de prestígio ou de poder, habitualmente os pais, é incapaz de ter em conta intenções e crê na responsabilidade objectiva. Neste nível, o segundo estádio rege-se por uma orientação ingenuamente hedónica e instrumental. As acções são definidas como justas se esta definição satisfaz o eu e, acessoriamente, as outras pessoas. Pode haver partilha e reciprocidade, mas trata-se de uma reciprocidade egoísta pela qual as relações humanas são assuntos de comércio segundo o princípio "é preciso dar a quem dá". Não existe neste estádio verdadeira reciprocidade baseada na lealdade, na gratidão, na justiça, na generosidade e na simpatia.


No nível da moralidade convencional, no primeiro estádio, o sujeito orienta-se em função das relações (moralidade da simpatia). Acha que age bem se é "gentil", se agrada ao outro, se ajuda os outros e se os outros o aprovam. Fundamenta sempre os seus juízos quanto à natureza do bem e do mal sobre as reacções do outro, preocupa-se mais com a sua aprovação ou desaprovação do que com o seu poder físico. Conforma-se à maioria e aos comportamentos óbvios ou evidentes. O sujeito começa a ter em conta as intenções pelo julgamento dos comportamentos dos outros. Neste nível, o segundo estádio diz respeito à moralidade da autoridade e da manutenção da ordem social. O sujeito aceita sem condições as convenções e as regras sociais para evitar a censura do outro. Já não se conforma aos padrões de outros indivíduos: submete-se à ordem social como tal. É a moralidade da lei e da ordem. Os comportamentos são tidos como bons se se conformam a um conjunto rígido de regras, se o sujeito cumpre o seu dever, se respeita a autoridade e mantém a ordem social. O sujeito subordina as suas necessidades de pessoa individual ao ponto de vista do grupo ou de uma relação partilhada.


O nível da moralidade pós-convencional é o da autonomia e dos princípios morais pessoais.
No primeiro estádio deste nível domina a moralidade do contrato social, dos direitos individuais e da lei democraticamente aceite. Há flexibilidade das crenças morais que faltava nos estádios anteriores. A moralidade baseia-se no acordo entre as pessoas, prestes a conformarem-se a normas que lhes parecem necessárias para manter a ordem social e os direitos dos  outros. Não há rigidez de normas. No entanto a lei deverá prevalecer em caso de conflitualidade apesar de a acção justa ser definida em termos de direitos individuais e de critérios examinados criticamente sobre os quais a sociedade entrou em acordo. O segundo estádio deste nível corresponde à orientação por princípios éticos universais. Aqui o comportamento é controlado por um ideal interiorizado que solicita a acção e que é independente das reacções do outro. Este ideal interiorizado representa a crença do sujeito no valor da vida e está marcado pelo respeito para com o indivíduo. Tem em si os princípios universais de justiça, de reciprocidade, de igualdade, de dignidade dos seres humanos considerados como pessoas individuais. É o estádio de moralidade mais elevado possível e que, tanto quanto se sabe, apenas pertence a uma minoria de pessoas adultas. A moral, nesta situação, é uma ética prática,  como a física é matemática aplicada, isto é, vivida. 


Potencialmente todos os seres humanos podem aceder ao estádio de moralidade do topo da pirâmide, assim se abra caminho para tal, pela destruição das barreiras sociais, económicas e culturais que leva os indivíduos à educação, à solidariedade e ao conhecimento.


Provavelmente com mais cultura, educação, arte e ciência, a pirâmide Kohlbergiana poderá inverter-se e talvez passemos a apreciar melhor os frutos que a vida nos dá, só possível pela vivência do imperativo kantiano:  age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, sempre como um fim e nunca como um meio. Ou como   também escreveu Pessoa: 
    O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
    Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
       Alberto Caeiro


domingo, 18 de dezembro de 2011

teoria da câmara fotográfica

Há um ditado chinês que diz, vale mais uma imagem do que mil palavras.  Devemos muito à China, não apenas a necessidade de nos aperfeiçoarmos devido à crise económica mas também o papel, ao  que parece terá lá sido inventado. Devemos-lhe também o sofrimento provocado pela síndrome da teoria da câmara fotográfica. É um pouco como S. Tomé  quando duvida da ressurreição de Jesus e exige que necessita de sentir as suas chagas antes de se convencer, é  portanto, ver para crer. E se colocássemos a questão ao contrário: valem mais mil palavras do que uma imagem?


A teoria da câmara fotográfica baseia-se na ideia de que o mundo real é semelhante às nossas percepções. Esta crença é uma suposição inconsciente e pode chamar-se de realismo ingénuo. As percepções não são registos fiéis da realidade, são interpretações dos dados dos sentidos e encontram-se contextualizadas pela vivência dos sujeitos. Para percebermos o mundo não basta termos uma imagem panorâmica do mesmo, é necessário ir contra as evidências da aparência. Muito do que nos permite uma explicação da realidade está muito para além das informações que nos dão os sentidos apesar de serem indispensáveis, já que a mente não é solipsista. 


As motivações, as experiências, os interesses, as aprendizagens e a personalidade do indivíduo condicionam as percepções, condicionam a mente. Todos esses elementos são interligados pela razão: conceitos, leis, teorias, modelos explicativos. A mente, com a razão, elabora conhecimento que não é limitado ao registo da imagem do mundo, cria um mundo correlato com mil palavras para responder às necessidades do sujeito.


A realidade é ficção. O nosso conhecimento é verdadeiro e chega apenas onde lhe permitem as nossas faculdades. É sustentado pelas percepções que não passam de construções mentais como as cores, os sabores, os sons, os odores  e as formas.
Conhecer é caminhar,  caminhar é ficcionar. Só a linha do tempo nos permite perceber quando é que a imaginação se cristaliza em realidade que entra no passado. O caminho já percorrido não é mais verdadeiro que o caminho que falta caminhar: eles formam uma unidade indissociável, não há passado sem futuro.



sábado, 12 de novembro de 2011

O riso

O riso é um fenómeno contagiante. Do ponto de vista fisiológico rir é mais económico do que chorar ou mostrar má cara. É necessário ativar menos músculos faciais par rir do que para ser mal-encarado.

Mas de onde nasce o riso? De que é que nos rimos?
O riso origina-se sempre, à exceção dos estados neuróticos, a partir de situações cómicas. O cómico é a causa e o riso o seu efeito. Fora do humano não há cómico.
Segundo Bergson, filósofo francês da primeira metade do século XX, o maior inimigo do riso é a emoção. Para ele, numa sociedade de inteligências puras, provavelmente deixaríamos de chorar, mas talvez continuássemos a rir. Rir é um ato inteligente. A insensibilidade ao cómico e a falta de humor, mostram idiotice e incapacidade de relacionamento saudável. O riso é, assim, um fenómeno individual e social necessário.

O riso também tem uma história. No filme de Jean-Jacques Annaud, "A Guerra do fogo", que retrata um período na pré-história e dois grupos de hominídeos, a tribo que sabia rir apresentava maior avanço no processo civilizacional.

Contudo, quando alguém ri, ri de si próprio, quando ri do outro, esse outro é um alter ego. E ri apenas num contexto cómico: onde atuam as forças do mal que desorganizam, desintegram, descontrolam. Rimos do mal que existe em nós e esse riso é uma tentativa de o exorcizar, de o arrancar às entranhas, de o projetar no exterior e de o incubar num bode expiatório. Rimos do mal, mas não do mal radical, este assusta, destrói em absoluto. Obélix, o carregador de menires, combate violentamente os súbditos de César mas não os aniquila. Os romanos hão-de fugir, restabelecer-se e voltar numa outra altura.

O riso ajuda a destruir o medo. Quem nunca ouviu falar do riso do diabo? O diabo nada receia, corajosamente desobedeceu ao todo poderoso Deus bíblico. Daí que na idade média os monges não fossem autorizados a rir. No livro "O nome da rosa" de Umberto Eco diz-se que "um monge não deve rir (...) o riso é um sopro demoníaco que deforma os traços da face e faz com que os homens pareçam macacos. O riso mata o medo e sem medo não há fé. Porque sem medo do diabo já não há necessidade de Deus".

Rir é afirmar a liberdade, é ultrapassar a barreira do medo. Rimo-nos do mal, mas nunca do mal radical. Este destrói absolutamente, mata e fulmina a memória.
A memória é a luta do homem contra o esquecimento, é a luta do homem contra o poder. A relação entre os homens só será verdadeiramente livre se o riso nunca for reprimido. Em qualquer contexto, por mais formal que seja, poderá haver sempre lugar para uma pausa em que o riso se manifesta. Não foi por acaso que se inventou a máscara. Ela protege o autor da risada e é  um modo político-social da permissão do riso.

Rir é também criticar, tem como correlato um estado de liberdade sem medo que abre caminho à reflexão e à meditação. Rir é duvidar, a dúvida é o princípio do pensamento. Se o homem é um animal que ri, então é necessariamente um ser pensante. Por conseguinte é levado a procurar a verdade. O riso é, pois, a causa e o efeito de uma atitude filosófica. Através do riso vencemos preconceitos, tormentos e obsessões e acedemos a uma energia ainda inexplorada. Por isso o riso é saudável, conduz-nos sempre à calma e a um estado reconfortante que dá sentido à vida.

sábado, 15 de outubro de 2011

o vagabundo filósofo

O Vagabundo filósofo

O vagabundo perdeu-se em pensamentos. O importante é o futuro, diz-se. Há alguns grupos humanos, principalmente em África, para os quais não faz sentido pensar no futuro. Para eles o passado está à nossa frente, o futuro atrás de nós, o presente é o mais importante, o que somos de verdade. Quando um turista pergunta a um desses africanos quando partirá o barco que ainda não chegou, a resposta que recebe é qualquer coisa como isto, se o barco ainda não veio como é que se pode saber quando é que ele vai partir. A pergunta é, para esse africano, perfeitamente absurda. Só podemos conhecer o passado pela memória, pelos vestígios arqueológicos, pelo pensamento sobre o que se observa no presente. A vida é um eterno presente, não poderá ser de outro modo. O futuro não existe, é um nada absoluto, não pode ser conhecido porque não tem fundamento ontológico.

Que desperdício enorme gastar tempo com o que não existe, pensarão justamente esses africanos. São muito mais inteligentes do que aqueles que propalam a civilização com base na criação do futuro. Bem vistas as coisas o futuro é a maior ilusão jamais criada pelas pessoas, o disparate dos disparates. Talvez por isso se compreendam os grandes desastres e tragédias da história dos seres humanos. Acontecem sempre em nome de um passado mítico e de um futuro radioso, de um projecto político, de uma utopia. Poderíamos investigar noutro âmbito o problema ou a questão do tempo, por exemplo, em Santo Agostinho, nos livros X e XI das Confissões. O passado é o que foi, já não existe, o presente também não existe, apenas é uma ligação entre o passado e o futuro. O futuro não existe porque ainda não aconteceu. Poderíamos aventar no limite que o tempo não existe. Não tem de facto fundamento ontológico, a não ser na sua qualidade de elemento espiritual que entra numa relação físico-matemática. Tempo, relação entre o espaço e aquilo que nele se move. Porque havemos de nos preocupar com aquilo que não existe? O futuro não existe. Se considerarmos que existe tudo quanto possamos imaginar, existe também o futuro. Na imaginação apenas. Como potencial projecto. Poderíamos afirmar que o futuro integra esse imenso manancial que é o não-ser. Portanto sou levado a concluir que não nos devemos ocupar do não-ser, não temos por onde. Seria um esforço em vão, uma tarefa inútil. Olhemos para o passado. Se alguma coisa tem interesse é aquela que é possível.

Nisto adormeceu. Sonhou. Sondou as estrelas próximas e distantes, a via Láctea, as miríades de galáxias. Viajou pelo seu passado. Sentiu-se leve como uma asa de pinhão bravo desprendida pela gravidade, rodopiou mil vezes, impulsionada pelo sopro invisível da ventania oriunda das cercanias. Sonhou, caiu, ficou sem ar, levantou-se, perscrutou o horizonte. Para além daquela serra o que haverá mais? Até agora o seu fim-do-mundo coincidia com aquela linha ziguezagueante, dentada, como se fosse metade da boca que come o universo à medida que ele se aproxima. O mundo, o que será? Seria necessário viajar, correr, galgar rios, estradas, montanhas, desertos, tratar, ver e pelejar. Amanheceu lentamente, as forças cósmicas encontravam-se adormecidas sob o manto fervilhante da crosta terrestre, húmida, quente, cor de musgo, como aquele que se usa na cobertura dos presépios. Vagabundo, quase eremita, a sua única preocupação e o seu sentido para a vida reduziam-se à tentativa errante de vasculhar o passado para responder à pergunta, quem sou eu?

O futuro jamais o preocupou, nunca perdeu um minuto da sua existência com o que considera uma leviandade, dar um rumo à sua vida, prever os caminhos que há-de trilhar, projectar-se. Aliás, a fisionomia que aparentava de certo não lho permitiria. Nariz adunco, barba farta, sobrancelhas cerradas, face avermelhada, um sem número de vasos capilares em mau estado. Quase sem pescoço, atarracado, pernas curtas, empenadas, como se nunca tivesse andado a não ser de burro, cavalo ou camelo. Enfim, vagabundo filósofo, do passado apenas. Para ele, mente quem diz, quero o meu futuro. A sua primeira grande viagem não foi além de percorrer um sem número de poetas e filósofos, escritores e dramaturgos, foi, pois, uma odisseia intelectual. Dos pré-socráticos, Platão e Aristóteles a Kant e Hegel, de Demócrito a Hume e Marx de Camus a Sartre. Havia nessa viagem ideias interessantes e muito simples em relação à qual deixou de ter qualquer tipo de dúvida. Sobre o universo: não teve origem nem vai ter fim, sempre existiu e sempre existirá, é infinito e não tem centro. Não há qualquer necessidade de um deus, tudo é uno e ao mesmo tempo múltiplo. Se alguém discordar que prove que não é assim. Não há espírito, não há alma, só corpos com energia própria e partilhada que funcionam de acordo com leis que vão nascendo, que se vão alterando, morrendo, descobrindo e esquecendo, paulatinamente. As metafísicas não são ideias sem materialidade ou energia correspondente, originante ou consequente.

Havia, no meio de todos aqueles engenhosos cientistas e pensadores um que em particular achava muitíssimo interessante, Ivan Pavlov que havia recebido o Prémio Nobel da medicina em mil novecentos e quatro, cuja ideia principal não era mais do que esta: o pensamento é o cérebro em acção. Os seres humanos são apenas cãezinhos de Pavlov, gatos de Thorndike e ratinhos de Skinner, nascem, crescem, vivem e morrem e co-pertencem a essa espantosa unidade e diversidade que é o universo. Castigam e são castigados, reforçam e são reforçados, alimentam e são alimentados, reproduzem-se em reverência ao gene egoísta ou altruísta, negociam e são negociados. Perceber tudo isto é regressar ao passado, é ver o que pode ser visto.

 Já um amigo de Péricles, esse famoso político Ateniense da antiguidade clássica, Anaxágoras de Clazómenas, defendia justamente, que o espírito é corpóreo, e que em todas as coisas há uma porção de todas as coisas, aliás, como é que o cabelo podia vir do que não é cabelo, ou a carne do que não é carne? Tudo está em tudo. Se o presente é a necessária derivação do passado, então todo o presente e até todo o futuro estão necessariamente no passado. Qual a diferença entre masculino e feminino para além daquela que é evidente, a saber, o primeiro é convexo, o segundo é côncavo. As respostas estão no passado, sejam elas mais ou menos verossímeis, como no Banquete de Platão: os seres humanos dividiam-se em três géneros e não apenas em dois, macho e fêmea, o terceiro era o andrógino e reunia as características do masculino e do feminino. Era ao mesmo tempo côncavo e convexo, com uma forma inteira e globular. Tinha quatro mãos, quatro pernas, duas faces iguaizinhas uma à outra, quatro orelhas, dois órgãos genitais. Deslocava-se rapidamente e em círculo. Os andróginos eram seres especialmente dotados, de grande resistência e muita ambição, por isso começaram a conspirar contra os deuses. Estes, comandados por Zeus, decidiram enfraquecer os seres humanos andróginos: dividiram-nos ao meio um por um, tal como cortavam sorvas para as pôr em conserva, reviraram-lhes as peles e ajustaram-lhes as carnes, sararam-lhes as feridas, alisaram-lhes as rugas, deixando-lhes uma marca que é hoje conhecida por umbigo. Foi também o próprio Zeus que lhes mudou os órgãos genitais detrás para a frente porque eles desfaleciam e morriam, já que não se podiam entregar aos prazeres e à luxúria, porque para isso também são necessários os olhos nos olhos. Assim Zeus determinou que os humanos se reproduzissem mediante os órgãos da fémea por intermédio do macho.

O amor data dessa época em que se repõe o estado original dos seres humanos, fazendo de dois, macho e fêmea, apenas um, curando-se assim a natureza humana e disponibilizando os homens e as mulheres para as tarefas da mudança, da história e da sobrevivência, onde não poderia faltar tempo para a adoração e veneração dos deuses. Menos mal, pior do que adorar os deuses só mesmo adorar e servir outros homens e mulheres como se de deuses se tratasse. Pior do que cumprir regras dos deuses, que são sempre dos homens, só mesmo sofrer a pressão do poder de quem não tem legitimidade para o possuir. Veio-lhe à memória uma conferência a que assistiu na faculdade de letras, proferida por um notável velhote que, no final da mesma desatou aos murros na mesa, para espanto de excelências e de minudências dizendo, Il n`y a pouvoir de gauche ni pouvoir de droite, il y a un seule pouvoir, le pouvoir de merde. É necessária a memória, a memória, a memória. Como também defendeu Kundera, a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.

 O poder envenena, arrasta consigo a miséria moral, a intriga, a desconfiança, a denúncia e lança os seres humanos na violência. Mais uma vez a sua teoria se confirmou, só o passado pode interessar, só o passado existe e faz sentido. Esta ideia jamais deixou de o perseguir, colava-se-lhe em sonhos como uma lapa à rocha, já que não a conseguia afastar, decidiu-se a viver com ela para sempre.
Por isso decidira estudar numa grande cidade de vagabundos que pastam na noite e onde vaguearam poetas e filósofos que também na noite pastaram. Ovelhas e pastores de si próprios, porque ninguém decide nada por ninguém, cada um é senhor de si e do universo que é de todos e de cada um, ou não fosse verdade a máxima de que tudo está em tudo. Até mesmo uma criança de tenra idade que pergunta porquê, quem é que fez o mundo, quem é que me fez a mim e lhe respondem foi deus, ou de outra maneira que não adianta muito mais, a teoria do Big Bang que se dá na escola, ela não deixa de perguntar, então quem é que fez deus, quem é que fez o pontinho de matéria hiperconcentrada de onde tudo saiu com a enorme e estrondosa explosão? Tudo está em tudo, tudo está no pontinho de matéria e energia hiperconcentrada. Esse pontinho que pode ser o resultado dum processo físico relativo a um buraco negro, e este, o resultado daquele, sempre existiu e sempre existirá, o que muda apenas são as aparências. Não podemos, pois, ir muito além da ideia de que “O que é, é, o que não é, não é”. Não vale a pena andar em busca do futuro porque mesmo que assim se faça o que se encontra é o passado. É também aqui que se desenha o absurdo. Que nada faz sentido ou que não tem significado primeiro ou último. Que nada existe ou se existe não pode ser conhecido ou caso possa ser conhecido não há critério ou evidência que garanta a verdade ou a veracidade desse conhecimento. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

valor

O valor é uma qualidade de natureza metafísica, existe num sistema criado pelos seres humanos e apresenta características não quantificáveis. Não podemos medir o valor do amor, do bem, do belo ou da justiça. O valor é sempre uma qualidade atribuída por um sujeito a um determinado objecto. A explicitação do valor é sempre do sujeito e está impregnada na actividade de valorar, quando se diz, por exemplo, a beleza está nos olhos de quem a vê, reconhece-se que há reciprocidade no acto de valorar: o sujeito projecta a sua beleza no objecto e este faz coincidir, no essencial, a imagem que emite de si com a projecção daquele. Os objectos ou entidades sobre as quais recai o juízo valorativo são uma pessoa, um objecto ou uma coisa, uma opinião, um sentimento, uma norma, um papel social. Tudo o que é real pode ser valorado. 

Mas, será o valor apenas subjectivo?  A objectividade não é mais do que a possibilidade efectiva de concretizar um objecto, é uma profunda e complexa intersubjectividade. Por isso o valor pode ser objectivo. Há acordos entre sujeitos acerca de valores éticos, morais, estéticos, económicos. Nesses universos delimitados é fácil saber o que é o bem, a justiça, o belo. O valor é a projecção da atitude do sujeito que valora sobre o objecto valorado e que tem por base a percepção do objecto pelo sujeito.

No pós-modernismo em que vivemos actualmente e que se caracteriza pela enfatização da descontinuidade, pela fragmentação, pela desumanização, pela falta de sentido e pela desestruturação, o que originou, por exemplo, o surgir de fanatismos religiosos como o islâmico, há uma profusa actividade egocêntrica, o ego individualista, fechado em si próprio, avesso à partilha e à solidariedade, valoriza sobretudo o seu prazer por uma instrumentalização de si próprio e do outro. Por isso se diz que há uma crise de valores que possibilitou o 11 de Setembro de há dez anos. A crise é uma  mudança de paradigma, é uma mutação genética dos valores, o definhamento de uns e o aparecimento de outros. Não há sociedade sem valores tal como não há sociedade sem crise de valores. 


O que há de diferente nos tempos que correm é uma tendência para a globalização de determinados valores associados ao consumismo/hedonismo. Se a essa ideia de  hedonismo massificado não corresponder nenhum objecto então o indivíduo, perscrutando à sua volta outros indivíduos sem objecto, relacionar-se-á com eles e poderão gregariamente, desenvolver uma rebelião das massas, tal como afirmava o filósofo espanhol Ortega y Gasset. Por isso estão a emergir na Europa, na América do Norte, no Norte de África e no Médio Oriente, fenómenos de convulsão social que anunciam a transição para um novo paradigma.




quinta-feira, 1 de setembro de 2011

amor

Na cosmogonia órfica, a Noite e o Vazio estão na origem do mundo. A noite dá à luz um ovo, donde nasce o Amor, enquanto que a terra e o céu se formam a partir das metades da casca quebrada.
Para Hesíodo, antes de mais foi o abismo; depois a Terra de largos flancos, seguramente apoiada, para sempre oferecida a todos os seres vivos, e o Amor, o mais belo entre os deuses imortais, aquele que irrompe os membros e que, no peito de todo o deus como de todo o homem domina o coração e o sábio querer. (...)
O amor, muitas vezes representado como uma criança ou um adolescente alado, nu, porque encarna um desejo que dispensa intermediário e não se pode esconder . (...) O facto de que o amor seja uma criança, simboliza sem dúvida a eterna juventude de todo o amor profundo, mas também uma certa irresponsabilidade: o Amor diverte-se com os humanos que caça, por vezes mesmo sem os ver, que cega ou que inflama (arco, flechas, aljava, olhos vendados, archote, etc.): os mesmos símbolos em todas as culturas. O globo que tem muitas vezes nas mãos, sugere o seu universal e soberano poder. Quaisquer que sejam os enfados poéticos, o Amor é sempre o deus primeiro que assegura não somente a continuidade das espécies, mas a coesão interna dos Cosmos.
O amor deriva também da simbólica geral da união dos contrários, coincidência de contrários. Ele é a pulsão fundamental do ser, a libido, que impele toda a existência a realizar-se na acção. É ele que actualiza as virtualidades do ser. Mas esta passagem ao acto não se produz senão pelo contacto com o outro, por uma série de trocas materiais, sensíveis, espirituais, que são outros tantos embates.
O amor tende a superar estes antagonismos, a assimilar forças diferentes, a integrá-las na mesma unidade. (...) De um ponto de vista cósmico, após a explosão do ser em múltiplos seres, é a força que dirige o retorno à unidade e a reintegração do universo, marcada pela passagem do caos primitivo à unidade consciente da ordem definitiva. A libido ilumina-se na consciência, onde pode tornar-se uma força espiritual ou progresso moral e místico.O eu individual segue uma evolução análoga à do universo: o amor é a procura de um centro unificador que permitirá realizar a síntese dinâmica das suas virtualidades. Dois seres que se dão e se entregam, reencontram-se um no outro, mas levados a um grau de ser superior, se no mínimo a dádiva foi total, no lugar de ser somente limitado a um nível do próprio ser, muitas vezes carnal ou sensual.
O amor é uma fonte ontológica de progresso, na medida em que ele é efectivamente união, e não simplesmente apropriação. Pervertido, no lugar de ser centro unificador procurado, torna-se princípio de divisão e de morte. A sua perversão consiste em destruir o valor do outro, para tentar fazê-lo servir egoisticamente a si, no lugar de enriquecer o outro e si próprio através de uma dádiva recíproca e generosa que faça cada um dos dois, ser mais, ao mesmo tempo que se tornam cada vez mais neles mesmos. (...)

Adaptado de Dictionnaire des Symboles, Jean Chevalier, Ed. Robert Laffont, pp 35 a 37

terça-feira, 30 de agosto de 2011

O lugar da filosofia

A filosofia é uma das áreas do saber que mais contribuem para a liberdade e é ao mesmo tempo uma inesgotável fonte de prazer, por isso jamais morrerá. A filosofia apresenta a característica de ser um problema para si própria, o que não acontece tanto com as ciências, que são particulares.
Cada ciência tem por objecto uma parcela mínima do real e por isso não possui em si própria a intuição da totalidade. O objecto de cada uma das ciências é abstracto, retirado da globalidade a que chamamos real. Cada ciência tomada em si mesma é, pois, abstracta. Consequentemente o cientista, o técnico, e também o cidadão comum, poderão viver alienados, separados de uma compreensão do mundo.Tal entendimento do horizonte de possibilidades só existe numa área do saber: a filosofia. Ela dá acesso à intuição do real na sua totalidade, não é alienante. O seu objecto concentra-se no ser humano, A filosofia permite procurar desvendar os mistérios do nosso pouco conhecimento e da nossa profunda ignorância porque se espanta com o mundo e por isso o interroga.

Os artifícios da ciência e da técnica entrelaçam cada vez mais a vida humana, são uma espécie de caixas negras de que o cidadão comum desconhece a estrutura. Assim, o homem vive na (in)segurança, cada vez mais rodeado pelo desconhecido, aparentemente familiar. Não intuímos rapidamente os fenómenos electro-mecânicos ocorridos quando pressionamos o botão que porá em funcionamento um sistema moderno de rega automática controlado por computador, mas os nossos bisavós, tal como nós, compreendem muito bem o como da rega pela nora ou pela picota. Para além da nossa ignorância, acresce ainda o facto de o espaço individual e comunitário ser cada vez mais reduzido. Sobrevivemos em enormes caixotes de betão armado, oitenta por cento da população no início do século XXI, circulamos como sardinha enlatada, dispomos em geral pouco espaço próprio, privado, íntimo, natural e também de pouquíssimo tempo. Este modo de sobrevivência pauta-se pela desconfiança do desconhecido. Somos potenciais consumidores-criminosos, vigiados a toda a hora por agentes de segurança, espelhos e câmaras de vídeo, no mundo do big brothter. O outrora cidadão à maneira de Sócrates ou de Rousseau é hoje o consumidor potencialmente criminoso. Isto aconteceu devido ao abissal desfasamento entre os desenvolvimentos técnico e cultural. Seria necessário cultura técnica e cultura científica, ou seja o cultivo das artes -  literatura, música, arquitectura, escultura, pintura, teatro, dança, cinema, desporto - para que o  verdadeiro cidadão fosse sempre uma realidade. A compreensão global das técnicas apenas por alguns gera a grande insegurança do homem da cidade. A técnica alienante resulta da instrumentalização da linguagem e desemboca na era atómica tal como ela existe: a espécie humana encontra-se em risco de auto-destruição.
Mas a técnica oferece-nos também conforto, segurança, versatilidade e alguma satisfação sensorial e e intelectual. Com a técnica o homem da cidade passou a ser um técnico, um especialista, sempre na mira da ínfima parte do objecto que lhe cabe. Mas o problema não está na técnica enquanto actividade criadora do homem, mas enquanto refúgio e isolamento ou alienação.
Os seres humanos são por natureza insatisfeitos, constatamo-lo sempre.  Contudo, o perigo para a essência humana surge quando se atinge um estado de satisfação meramente hedonista pelo consumo incutido, cego, irreflectido, sem criatividade. Este estado só se atinge quando não há compreensão global da realidade. Por isso a filosofia é importante porque nos faz cumprir a promessa dessa compreensão.
O filósofo raramente se satisfaz com o que alcançou, deste modo está sempre em progresso e se isso é uma evidência é porque todos os seres humanos possuem no seu íntimo pelo menos um pedacinho de filosofia.

A filosofia é uma forma de amor pela qual as pessoas se sentem atraídas para a verdade (desocultamento) em diversas dimensões e perspectivas. Sem verdade o mundo não funcionaria, sem filosofia viver-se-ia em permanência na ilusão inconsciente.

Da nossa estrutura corpórea emergem impulsos que nos conduzem a questões:
o que somos?, donde viemos?, o que fazer?, para onde vamos?, farão sentido o amor e a liberdade? A filosofia nasce do espanto cuja função é despertar-nos, vencer a inércia e por-nos a caminho dum consciência cada vez mais manifesta. É esta consciência e respectiva vivência (a consciência é um incessante fluxo de vivências intencionais) aquilo a que verdadeiramente se pode chamar felicidade. Não há felicidade inconsciente.
Os seres humanos agem muitas vezes contra elementos naturais e consequentemente contra si próprios, por isso, parcialmente  alienados, permanecem insatisfeitos. Para responderem a essa insatisfação terão de compreender os problemas que os atingem, terão que efectivar interrogações. É aqui que se encontra o princípio da filosofia, o momento em que surge em nós a primeira pergunta. Porque é que perguntamos? Faz parte da natureza humana perguntar. Por isso todos os seres humanos podem ser filósofos. É nisto que eles se distinguem dos outros animais, parece que eles não fazem perguntas e não tecem argumentos.
Portanto o lugar da filosofia é o próprio Homem: a estrutura corpórea de onde emergem as perguntas e as respostas que lhes são dadas. Este processo é dinâmico e interminável porque as respostas são sementes que germinam. 

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

princípio da minha história da filosofia

Há muitos anos tive uma longa conversa com alguém mais velho do que eu. À lareira, no Inverno rigoroso, com as místicas labaredas a inspirar-nos. O tema dominante era a passagem do mito à razão. Falou-me daqueles homens que viveram há mais de dois mil e quinhentos anos. Eram os filósofos pré-socráticos. Viviam na zona de Itália e em Atenas, na Grécia. Fiquei fascinado com as suas ideias e comecei a sentir que hoje não somos assim tão diferentes, o céu que observamos é o mesmo, azul e povoado de estrelas, o planeta que habitamos é o mesmo e as pessoas são muitíssimo semelhantes: amavam, odiavam, vingavam-se, inventavam histórias, nasciam, cresciam, casavam, reproduziam-se e morriam. Criaram tecnologias muito diferentes das de hoje, mas baseadas, talvez, num mais apurado processo de observação. Alavancas, espelhos, relógios de água, de areia e de sol, sistemas de irrigação, agricultura e pastoreio, caça, pesca. Realidade virtual, física, filosofia natural, música e matemática, astronomia, história e geografia, literatura, desporto e competição. É caso para perguntar, o que é que há hoje de inteiramente novo à face da terra e na vida das pessoas? Quase nada, creio. A democracia política, a ditadura, a tirania, a liberdade, a ética e a moral. A linguagem e a gramática, a lógica. Nessa remota antiguidade está lá tudo. Tive mais tarde um professor de filosofia medieval que asseverava que Platão e Aristóteles, os mais influentes e mais próximos de Sócrates e dos pré-socráticos, são os filósofos e tudo o resto é comentário.