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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

SONHO



Irises-Vincent van Gogh.jpg

Vincent van Gogh, maio 1889
óleo sobre tela - 71 cm × 93 cm


Encontrei um sonho
de lírios azuis 
num jardim de delícias,
sob o intenso brilho do sol.
Bailávamos leves, leves,
ao som da Petrushka.
Abalámos então 
até à praia, areia cor de mel,
e navegámos num batel
uma verde onda do mar,
num constante sobe e desce.
Assim a gente cresce, 
aparece e desfalece,
como no carrossel popular
onde baloiça o amor,
a combater toda a dor,
a rodar, a rodar, a rodar.


Hieronymus Bosch, 1504

óleo sobre madeira - 220 cm  × 389 cm

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Só 
Como rio que desagua no deserto
Gemendo em surdina 
Respirando fome, frio e morte
Duna gélida trespassada pela lâmina doirada
De feridas expostas na consciência
Universo por que me consumo
Noite adentro, dias  afora, anos a fio
À procura do nada que me atormenta
Me puxa, me fala, me canta e me adormece
Ó criança de mim, mais infante, crédula
Impiedosa, apaixonada e risonha
Onde ficaste quando trocavas figos por tostões
E distribuías amêndoas de casca dura
Pelo sorriso dos outros e pela promessa
Da morte fingida num jogo de índios e cóbois
Como era tudo tão direto e sem pensamento
Deitado no feno contava as histórias
Inscritas nas nuvens pelo vento varridas
Devagarinho no murmúrio das águas límpidas.

sábado, 21 de novembro de 2015

a soma das partes

Em dias escuros onde se esconde o sol atrás das nuvens  tocamos os dedos e todos os fantasmas desaparecem. Às vezes sinto no estômago a crueza das horas e a ágil manha do mundo que desconheço quase totalmente. Não sou deus e ainda bem, sou mais eu partido em pedaços que comunicam uns com os outros em todo o tempo. Não sei a finalidade da minha existência nem a dos outros e tão pouco se se preocupam com isso. Sorte a deles se forem felizes assim. Trago em mim vários eus como provavelmente quase toda a gente. Não acho que os outros sejam assim tão diferentes de mim, afinal partilhamos noventa e nove vírgula nove por cento do código genético. Se sou racista ou preconceituoso, sou-o de mim mesmo. Não sei se sou bom ou mau, a maldade e a bondade estão para além da esfera da minha vida transcendental, estão quando muito, na imagem que transmito aos outros pelo facto de existir e ser material. Não pedi para nascer, tal como ninguém pediu, fui lançado no mundo, e a cada dia a responsabilidade de me erguer e continuar ou não o caminho, é toda minha. Não sou perfeito nem  quero ser, por saber de antemão que tal é impossível, sou feito de matéria corruptível e, tal como qualquer criatura viva, aproximo-me cada vez mais da meta que levará à fixação de mim mesmo, à minha existência absoluta. Quando saio de casa a qualquer hora do dia, as pedras da calçada empurram-me contra os meus pés tal como a todo e qualquer um. Sinto-me por isso tratado pelas leis do mundo, as da natureza, as outras todas são ficção e provisórias, com toda a justiça possível. Não sei se poderíamos viver num mundo mais elegante ou mais belo. Este em que vivo já tem tanta beleza que o tempo da minha vida não me permite percorrê-la, teria de ler todos os bons livros, percorrer todas as aldeias de todo o mundo, conhecer todas as boas pessoas, ouvir todas as boas músicas e ver todos os bons filmes. Sei que este mundo apesar de conter imensa beleza, me permite, ainda assim, sonhar utopias. Mas estas, penso eu, são apenas imagens construídas pelas células do meu cérebro e nada mais que isso. Por isso as minhas utopias apenas estão em mim, embora as possa partilhar, muito parcialmente, com os outros, caso eles tenham por mim algum respeito e para mim algum tempo. A minha vida é só minha e de mais ninguém, sou como um lobo solitário que se perdeu em pensamentos e deu por si longe da alcateia. Só lhe resta a lua, os caminhos pedregosos e o vento para transportar os seus uivos. Vivo dentro da minha pele tal como me ensinaram os professores de ciências naturais. Mas mesmo assim, às vezes sinto frio dentro do meu corpo e até na consciência. Talvez sejam os conselhos dos outros para manter a cabeça fria e não agir a quente, como se eu não fosse um animal de sangue quente. Todos o somos, e por isso há alguns, tal como os vampiros, que têm necessidade de sentir, não o próprio, mas o dos outros, numa atitude de identificação com a humanidade. Isto é ser humanista. Querer identificar-se no sangue vermelho, porque o que interessa no sangue é a cor e a temperatura, talvez o sabor seja importante para alguém, é querer ser deus, mas não um deus qualquer, um deus-mundo senhor de si próprio e de todas as suas partes que formam uma unidade absolutamente coesa e inquebrantável. Tal como Espinosa e talvez o Caeiro de Pessoa. Esse deus, ou como quer que lhe chamemos, é indubitável. Existe mesmo, não podemos pôr em causa a nossa existência sob pena de estarmos a delirar, depois de tudo o que se passou na história da literatura filosófica. Como parte ínfima do mundo que sou, seria demasiada petulância querer-me subtrair ao mundo, que sem mim também não existiria. Afinal o todo é sempre a soma das partes.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

CARLOS PAREDES

Oh música minha amada,
que me levas de viagem
à noite divertida, 
ao canto de amanhecer
e à dança dos camponeses.
Contigo bailamos 
como papoilas ao luar  
e encontramos
os nossos amigos.
Contigo estremecemos,
voz da terra vibrante
que nos faz respirar
até ao deslumbramento
na consciência do nada.
Música, ora pela saúde
dos nossos tímpanos,
para que se não perca 
o movimento perpétuo
nos verdes anos,
nem as asas sobre o mundo
e muito menos a arte
da militância 
que nos impede de desistir.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

governo

A quatro de outubro do ano da graça de dois mil e quinze houve eleições para escolher deputados à assembleia legislativa da república portuguesa. Concorreram vinte e dois partidos. O partido mais votado (psd) conseguiu 89  deputados, o segundo (ps), 86 deputados, o terceiro (be), 19 deputados, o quarto (cds), 18 deputados, o quinto (pcp), 15 deputados, o sexto (pev), 2 deputados e o sétimo (pan), 1 deputado. No total 230 deputados. Nenhnum dos outros partidos elegeu deputados.
A direita política (psd e cds) soma 107 deputados. Os outros partidos (ps do centro político, be da esquerda , pcp da esquerda , pev ecologista e pan que se diz sem ideologia) somam 123 deputados. A direita política não tem maioria. O centro-esquerda e a esquerda têm a maioria. Se há entendimento em questões essenciais como educação, saúde, habitação, segurança social, economia, trabalho, cultura, ciência, entre os partidos de centro esquerda e esquerda, não deverão ser eles a governar? Afinal quem ganhou as eleições?
Se atendermos ao significado da palavra "democracia", poder do povo que escolhe através de sufrágio universal sem voto obrigatório, todos ganharam, mesmo aqueles que se abstiveram, todos exerceram o seu direito, uns de votar outros de não votar. Quem não vota decidiu entregar a decisão a quem escolheu. Não decidir é sempre decidir não decidir, em democracia toda a atitude legal, moral e ética é legítima. Pois que assim seja. Há um velho princípio, o da maioria, que diz que em democracia quem deve decidir é a maioria. É difícil não concordar politicamente com esse axioma. Vivemos nele e com ele e não é assim tão depressa que o vamos abandonar. Então porque tremem alguns empresários, leia-se "capitalistas", com nervoso miudinho? Então a vontade da maioria do povo não é para respeitar?
Com a revolução francesa o poder político tornou-se tripartido: executivo (governo), legislativo (representantes do povo) e judicial (tribunais). É um trindade axiomática que trouxe notáveis progressos na aplicação da ética e da moral nalgumas partes do mundo ao longo de muitos anos e ainda hoje, apesar dos sinais preocupantes que vêm de diversas latitudes.  O governo governa, isto é, toma todas as diligências possíveis para que as leis sejam executadas, governar é tão somente fazer cumprir as leis. Ao governo não cabe fazer leis. Quem manda no governo é o povo através dos seus representantes, o governo não governa a assembleia legislativa, ela é autónoma, tal como o povo. As leis emanam da vontade popular e são feitas pelo legislador, o conjunto de deputados, legítimos representantes do povo. Os tribunais julgam para que de alguma maneira a justiça se cumpra e a interpretação da lei não seja atrabiliária, para que não haja abusos de poder, para que haja equilíbrio no deve e haver individual e social. Deve respeitar-se a tradição quando ela é democrática e não quando ela vai contra a liberdade, a igualdade e a fraternidade, por isso o respeito pela vontade do povo é o respeito político máximo, corresponde ao grau máximo da ética política. Não há argumentos sólidos que justifiquem o "nervoso miudinho" de alguns empresários, a não ser a justificação psicológica do medo de perder o poder que o dinheiro dá sobre os outros: alterar a base tributária parece fazer temer e tremer alguns, mas pode ser uma legítima decisão dos representantes da maioria do povo que pode, deve e tem o direito a entender-se para formar um governo que esteja de acordo com os entendimentos fundamentais de uma maioria muito mais do que aritmética.