Páginas

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Carlos Drummond de Andrade - viver não dói

Há um poeta brasileiro de que gosto muito, Drummond de Andrade (1902-1987), tem um poema que talvez não seja considerado dos melhores do autor, mas é o de que eu gosto mais, não resisto a colocá-lo aqui.



Viver não dói

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas
e não se cumpriram.
Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer,
apenas agradecer por termos conhecido
uma pessoa tão bacana, que gerou
em nós um sentimento intenso
e que nos fez companhia por um tempo razoável,
um tempo feliz. 
Sofremos por quê?
Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer
pelas nossas projeções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos
de ter conhecido ao lado do nosso amor
e não conhecemos,
por todos os filhos que
gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios
que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados,
pela eternidade. 
Sofremos não porque
nosso trabalho é desgastante e paga pouco,
mas por todas as horas livres
que deixamos de ter para ir ao cinema,
para conversar com um amigo,
para nadar, para namorar.
Sofremos não porque nossa mãe
é impaciente connosco,
mas por todos os momentos em que
poderíamos estar confidenciando a ela
nossas mais profundas angústias
se ela estivesse interessada
em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu,
mas pela euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos,
mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós,
impedindo assim que mil aventuras
nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e
nunca chegamos a experimentar.
Como aliviar a dor do que não foi vivido?
A resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo,
mais me convenço de que o
desperdício da vida
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca,
e que, esquivando-se do sofrimento,
perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

pássaros

Entro em casa:  ninguém.
Atravesso a sala em câmara lenta,
abro a porta de correr do quintal,
olho as plantas verdes, conheço-as
mesmo sem  saber o nome de todas.
Catos, dálias, amores de mãe,
brincos de princesa, aloé vera,
roseira, alecrim, salsa, hortelã…
Absoluto silêncio, fraca luz
e a saudade voltou.
Ontem vi claramente vista uma osga,
tão linda, percorrendo com ternura
o pé da laranjeira que, por ora,
só tem laranjas verdes e pequenas.
Regresso à sala grande, procuro
música ao acaso.
Tiago Bettencourt com a canção
de engate do Variações.
Escuto até ao fim, levanto-me,
espreguiço pernas e braços
estendo a alma como um lençol
e vejo uma borboleta,
como Psychê, nora de Afrodite contra sua vontade.
Atravessei a porta de correr
e dei de ouvidos com os pássaros
que, por vezes, me  lembram a caça aos pardais
na China de Mao, será mito?
Gosto de os escutar, 
é tão bom sentir o carrocel da vida 
em bebedeiras musicais. 


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

lampedusa

nasce o infinito na curva da estrada
dentro do estômago, bem no fundo
no plano mar de mim mesmo
nasci ontem e hoje ainda aqui estou
a lamber os selos na loja dos correios
as cartas hão-de dar a volta ao mundo
galgar tempestades e voar sobre as montanhas
hão-de chegar aos pais natais verdes
aos diretores das organizações não governamentais
voarão nos porões dos aeroplanos no fundo dos caixotes
levam consigo segredos escondidos ou não fossem secretos
epístolas do fim do mundo caídas de para-quedas
nas florestas virgens da civilização já morta
morreram em lampedusa os heróis e os mártires
separaram-se os corpos de suas almas
e as balas perdidas encontraram a terra fértil
como as margens do eterno nilo repletas de crocodilos
choram desalmadamente, e como as carpideiras
gritam pelos vivos, os mortos, esses já foram
aproveitemos o sal das lágrimas e temperemos a carne da vida
a noite já vai longa e não tarda a madrugada


quinta-feira, 6 de outubro de 2016

calor de outono


com o calor de outono
a inchar  as veias
o sangue late-me
como um cão aflito
de um mendigo
numa rua fétida
ouço-o tão vivamente
como o mar num búzio
vagabundo, remendado
aceitando moedas pretas
os rios do sangue
trazem luz e consciência
o nosso destino 
fogo que queima como ferrete
carne viva que dói
corpo contorcido entregue
à fogueira das vaidades
e tudo no fim, como a alegria
os espinhos das roseiras
suas folhas e as próprias rosas
e os verdes ramos
será cinza de uma vida 
de uma combustão atenta
de uma tortura, às vezes feliz
enlaçada nas raízes de vinho
que não há-de ser bebido
conduzido à substância ácida
corroendo paixões, escavando
na dureza das rochas, as cavernas
as tocas, as grutas do amor
a aí ficará a nossa história
gravada nas camadas sucessivas
dos restos das nossas existências
como tentativas de ser