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terça-feira, 15 de outubro de 2013

o valor da democracia

Há algum tempo, no decorrer de uma aula, depois de ter explicado aos alunos, não sei se melhor ou pior, uma parte da lógica proposicional, perguntei-lhes qual o valor de verdade de uma frase: 

"a validade refere-se ao tipo de relação existente entre as premissas e a conclusão de um argumento e é independente do que é afirmado nelas." 

Seguidamente sugeri: levante o braço quem achar que a frase é falsa, e já agora, aproveitamos também para descobrir o valor de uma parte significativa da democracia, vamos contar quem é a favor da falsidade da frase para concluirmos ou não se a maioria tem ou não razão. 

No início da votação alguns alunos não levantaram o braço, supostamente consideravam a frase verdadeira, o que era correto. Pouco depois, um cada vez maior número de alunos foi levantando o braço, até que, finalmente, todos o fizeram. Houve um fenómeno de contágio típico das votações de braço no ar. Por isso, quando se trata de escolhas sérias em democracia, deve o voto ser secreto e antecipado por um período e condições propícias à reflexão e ao conhecimento, principalmente quando se elegem pessoas e para que as escolhas sejam baseadas na informação e na formação sólida de ideias ou opiniões. Os alunos facilmente reconheceram que as maiorias não têm sempre e necessariamente razão.

A popularidade e a eleição não são sempre resultado de uma reflexão suficiente. A história diz-nos, por exemplo, que nas eleições de julho de 1932, os nazis tiveram o seu melhor resultado até então, obtendo 230 lugares no parlamento, tornando-se o maior partido alemão, sob a direção de Adolf Hitler, e alcançando um poder que desembocou num processo de domínio e de violência que culminou  na segunda guerra mundial.

A democracia é um valor em si mesma, na medida em que é partilha constante, baseada no respeito absoluto pelo outro, assumido por todas as partes envolvidas em processos decisórios. Não é um meio para atingir fins exteriores a si própria. O princípio e o fim da democracia consistem na realização de um imperativo ético. Em democracia ninguém é instrumento de ninguém, a relação humana é sempre de igual para igual, no que à dignidade humana diz respeito. Afinal só assim é que a democracia pode ser o que originariamente foi para os cidadãos de Atenas na Grécia antiga: condição ininterrupta de igualdade, liberdade e responsabilidade, poder do povo, conjunto de cidadãos informados e conhecedores do que está em causa nas escolhas necessárias.

Por isso o caminho para se alcançar a democracia plena (quase uma utopia) está por realizar: há por todo o mundo muita abstenção e muitos votos simplesmente emocionais e pouco racionais e há também muitos assuntos tão importantes que nem sequer vão a eleições.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

sinais dos tempos ii

 E quando chegar a nossa vez? Achamos ingenuamente que a nossa vez não chegará. Somos competentes, mentalmente saudáveis, damos o  nosso melhor todos os dias, temos esperança, vivemos num pequeno país onde o índice de desenvolvimento nos coloca em 43.º lugar a nível mundial, num mundo de duzentas e seis nações. Encontramo-nos muito acima da média. Mas também é um facto que temos descido nos últimos tempos, somos aliás, um dos poucos países que em termos mundiais tem vindo a descer. Esta descida aos infernos para muitos é uma aparente subida aos céus para alguns. Jovens altamente especializados que entraram no mundo do trabalho pouco depois dos vinte anos e que agora perfazem entre trinta e quarenta anos de idade regressam a casa dos pais com o desemprego nas mãos depois de quinze ou vinte anos de trabalho numa carreira incerta.

A capacidade instalada por unidade de produção industrial portuguesa que ainda resta aumentou exponencialmente nos últimos trinta anos. Uma empresa que há trinta anos dava trabalho a mil operários, hoje, na segunda década do século XXI, com um quarto dos "colaboradores", consegue produzir dez vezes mais: resultado da laboração contínua, vinte e quatro horas por dia, e da automação imposta pela redução de custos. De facto as linhas automatizadas, os robôs e os computadores não dormem, não adoecem, não envelhecem, não precisam da segurança social ou do serviço de saúde, não protestam, não fazem greve, não têm filhos nem pais para cuidar, não pensam.

 Para onde foram os outros três quartos de pessoas? Uns para trabalhos precários, ao quilómetro, à peça, ao dia, ao mês, à semana, no nosso país, outros para a emigração e outros muitos ainda para o desemprego estrutural ou de longa duração. O tempo da rebelião das massas de que nos falava o filósofo espanhol Ortega Y Gasset parece estar a chegar ao fim. O enfraquecimento individual em termos culturais e económicos leva a um rede social cada vez mais ténue, à quebra de solidariedades, ao entorpecimento da criatividade, à anomia, ao desespero, à revolta desorientada. Parece portanto que este não é o caminho da luta contra o absurdo mal estar desta civilização. Talvez valha a pena tentar o inverso: colocar as novas tecnologias ao serviço de todos e não apenas de alguns. Estes não deixariam de viver bem e provavelmente a sua vida alcançaria um sentido mais pregnante e de redobrado interesse.

Qual é o sentido de ser dono do mundo? Ninguém o será. A história já mostrou abundantemente a glória e a miséria de muitos que, devendo tudo à humildade, sucumbiram num processo que os levou dos píncaros da fama e do poder para o poço sem fundo do esquecimento e da degradação mais abjeta, veja-se, por exemplo, os grandes ditadores como Mussolini ou Hitler e mais recentemente Saddam Hussein, Kadafi, o empresário britânico Robert Maxwell ou o banqueiro Bernard Madoff.

Há quinze anos atrás discutia-se nos meios do trabalho, tanto os dirigentes das empresas públicas como os das privadas, tanto os partidos políticos como os sindicatos, a altíssima probabilidade da necessidade de se reduzir o horário de trabalho para todos os que viviam exclusivamente dos rendimentos relalivos ao seu próprio labor. Seriam trinta horas semanais, vinte e cinco, vinte e duas. Manter-se-iam os rendimentos e aumentar-se-iam os salários agora indignos e investir-se-ia, de uma forma gradual e sustentável, na educação e na cultura. Através de um excelente sistema fiscal e de um estado forte (o Estado deve representar todos os cidadãos) corrigir-se-iam profundas desigualdades. Potenciar-se-ia a iniciativa pública e privada, surgiriam novas formas de atividade económica fundamentalmente baseadas na diversidade cultural.

Seria o modo de reduzir o número dos sem ocupação com vista ao pleno emprego e de, ao mesmo tempo, libertar mais tempo a cada um para o que dá sentido à vida da maioria dos cidadãos: arte, ciência e cultura, amigos, família. Mas, para tal seria necessário encontrar no poder decisório alguém que representasse efetivamente esta legítima pretensão, que é uma necessidade popular. Isso não aconteceu, o que mostra que há uma verdadeira crise de participação cidadã e uma crise de representação.

William Shakspeare (1564-1616), genialmente reconheceu que o mundo é um grande palco onde os homens e as mulheres são atores. Estes representam representando-se a si próprios e aos outros que aparentemente neles depositaram a confiança. Mas quebrou-se o elo de verdade entre o príncípio da ação e o ator, o que levou a um péssima representação. Muitos homens e mulheres tornaram-se maus atores, nomedamente muitos dirigentes políticos que um pouco por todo o mundo já não representam nada ou então representam apenas o poder de uma realidade: o dinheiro e a alta finança.

 Por isso, como o nada é o vazio, encontramo-nos em plena era do vazio como profetizou o filósofo francês Gilles Lipovetsky num dos seus ensaios sobre o individualismo contemporâneo. O caminho a seguir será com certeza aquele que nos leva à saída do consumismo e do individualismo com vista à entrada no consumo ponderado e moderado e à solidariedade social e intergeracional.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

sinais dos tempos i

Vivemos em crise. As ruas das vilas e das cidades cada vez mais povoadas de gente a correr sem tempo para nada. As lojas, os cafés, os restaurantes, os consultórios, os cabeleireiros, as manicuras dessas artérias (que nome bonito, no sistema circulatório, são elas que transportam o sangue oxigenado, se não me falha a memória) encontram-se cada vez mais fechadas, mais inertes. Trespassa-se, vende-se, aluga-se, fechado, encerrado. Para onde vão as pessoas que aí trabalharam? Que vidas seguiram? Emigraram, foram parar à sopa dos pobres, arranjaram um trabalho de oito horas por dia e duzentos euros ao mês, suicidaram-se? Este assombro podemos constatá-lo e parece irreversível. Estamos na era da internet, da fast-food, da precarização. Tudo é descartável, os seres humanos já não pertencem a essa miragem que se chamou humanidade. Ser humano é agora também isto, estar preparado para uma ignara reciclagem a qualquer momento. Os cómicos dizem-nos, as pilhas para o pilhão, o vidro para o vidrão, os velhos para o velhão. E nós ainda sorrimos de sorriso cáustico como se tivéssemos engolido à força óleo de fígado de bacalhau. E continuamos a dança da vida adiada, com mais horas de trabalho, menos tempo de convívio com os nossos pares e amigos, fugases momentos de família, menos poder de aquisição. Não há tempo para nada. E se tivermos a ousadia de tomar um café e saborear um pastel de nata na esplanada ainda nos arriscamos a ser condenados em público por ociosidade, por preguiça, por viver acima das possibilidades, por indigência. A tendência para mais trabalho para menos gente e desemprego forçado para cada vez maiores multidões acentua-se todos os dias. As máquinas, essa parafernália de inteligência artificial, vão vertiginosamente retirando lugares de trabalho às pessoas. Computadores, robôs, redes e linhas de produção automatizadas substituem sistematicamente o trabalho humano. Muitos seres humanos deixaram de fazer falta ao sistema produtivo. São descartados, lançados no lixo social, abandonados à sua sorte, num mundo onde uma em cada oito pessoas sofre de subnutrição aguda, onde cresce inexoravelmente o número de pobres nos países desenvolvidos.
A caixa de pandora que libertou todos os males contém  fechada a esperança, a única coisa que resta aos oprimidos e alienados. Não se compreende porque não se aproveitou a inteligência humana que descobriu as leis da natureza e com elas criou tecnologias que substituiriam o trabalho humano monótono e repetitivo. Não se entende por que é que as máquinas substituem efetivamente as pessoas nessas tarefas e não as libertam para aquilo que pode ser verdadeiramente humano: a arte, a cultura, as viagens, o turismo, o lazer, a literatura, a música e a poesia, o desporto e a ciência. A tendência continua a ser a desumanidade e a alienação. O sistema de distribuição das riquezas torna alguns obesos mórbidos e lança na fome milhões. Podemos assistir a tudo isto sem nada fazer, como se fôssemos cúmplices do mais hediondo dos crimes e permanecêssemos caladinhos? E quando chegar a nossa vez? Gritaremos aos quatro ventos que ninguém nos salva? Que fazemos nós aqui e agora para nos salvarmos?