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segunda-feira, 23 de maio de 2016

fragmentos

Uma planta germinou e vive 
na fissura do muro.
Outra ergue-se do vaso 
e cresce encostada à parede.
Para a vida, as barreiras 
nem sempre são becos sem saída.
As flores, de formas à vista
e raízes invisíveis,
podem ser belas  beleza são epifanias,
quando enquadradas
mostram-se em toda a parte. 
São tão belas como os amores perfeitos, 
só que às vezes não damos por isso.
 


Dois fragmentos do quintal -  23 de maio de 2016


domingo, 8 de maio de 2016

INFINITOS


Delta do rio Okavango no deserto de Kalahari 


Pouco ou nada  sei do mundo, 
e mesmo assim, sem razão aparente,
busco um significado para as sensações 
que me atormentam. 
Procuro incessantemente não ter ilusões
porque não acredito na sorte das lotarias. 
Sou, tanto no sonho sonhado 
como no acordado,uma ninfa e, 
depois de lagarta pesada, 
esvoaçante borboleta soltando escamas, 
um outro a cada instante que passa,
ora desejando igualdade
ora querendo diferença,
como o Tejo morrendo no mar
ou  rio Okavango no deserto a chorar.
Vou gostando de olhar as estrelas, 
e sinto-me bem a viajar assim, 
dois mil anos luz até Deneb, 
treze mil milhões desde o início, 
cumprimentando as luas de Júpiter,
navegando no cinturão de asteroides,
caminhando e pontilhando
como um pintor impressionista,
só para apaziguar a melancolia
induzida pela ilusão 
dos ecrãs, 
quadrados que tanto me afligem.
Procuro o sentido no frágil conforto
como concha sem pérola,
e ao acordar descubro 
que estamos vivos, 
ainda somos infinitos
no amor, na luz e na dor.


terça-feira, 3 de maio de 2016

a deusa deve ser bela



Afrodite de Cnido


da aziaga natureza
levo as selvagens chicotadas 
os empurrões do vento
o frio glaciar dos invernos
o crocitar dos corvos loucos
a dor finíssima do fio da navalha
encaro o poder de Zeus
na inconsistência de tudo
a que não me posso furtar
de olhos secos e inamovíveis 
vejo turvo e sinto socos de angústia
nas internas paredes do estômago
sou náusea sem fim
embalagem de ladras invisíveis
que me levam os dentes, os nervos 
pedaços de pele e cabelos pretos
liquefaço-me a cada instante
vou escorrendo pelos muros do universo
como a água de Heraclito
recorro, cadáver cinético
a Afrodite para me compor
(a deusa deve ser bela).