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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Democracia

Quando me submeti, tal como milhões de pessoas, à vacinação contra a Covid 19, uma das falas da enfermeira que me inoculou, e que aceitei, terminava assim: se não acreditamos na ciência, em que é que havemos de acreditar? 
Sabemos que não é possível viver sem crenças, por mais simples e intuitivas que sejam. Viver conscientemente pressupõe sempre alguma expetativa positiva, alguma crença, mesmo que se seja algo pessimista.
Os conhecimentos científicos, cada um sobre o seu objeto concreto, são provavelmente, o que de mais refinado, mais rigoroso e racional se faz. Por conseguinte as ciências lógico-matemáticas, físico-naturais e humanas, merecem imenso respeito e devem servir sempre de matriz orientadora das ações humanas. Contudo, infelizmente, as ciências humanas, ao contrário das outras, são atualmente muito desvalorizadas: história,  sociologia, psicologia, filosofia, ciência política, geografia, antropologia, arqueologia. Desvalorizadas têm sido, assim, áreas  e atividades afins como a educação, a cultura e as artes. Dos alunos que tive ao longo de trinta anos, quase nenhum quer ir para estas áreas. Muitos dos meus colegas professores queixam-se do mesmo. Porque será? 

Não existe a Ciência, tal como não existe a Religião. Há ciências e religiões, sempre no plural. Do mesmo modo diremos que não há a ideologia, mas sim ideologias. As ciências, como vivências dos cientistas e daqueles que procuram compreender as ciências, não são imunes às ideologias nem a outras formas de representação da realidade, como as artes e as religiões.
As ciências são portadoras de visões parciais da realidade, são plurais, cada uma delas situa-se numa perspetiva a partir da qual contribui para o conhecimento do mundo. As ciências têm alguma informação da realidade, contudo, nenhuma delas usufrui de todos os pontos de vista ou de todos os conhecimentos possíveis acerca do mundo e da vida. As ciências são o exercício, a atividade dos cientistas, seres vivos sempre em mudança, na busca de soluções para problemas práticos ou teóricos. Tomar o conhecimento científico pelo conhecimento do ser na totalidade, significa cair num erro de tomar a parte pelo todo, o que é logicamente insustentável. Cair-se-ia no abismo da insensatez, endeusando a própria Ciência e negando a natureza dos seres humanos, entrar-se-ia no reino da superstição cuja principal característica é a  crença irracional. 
O conjunto de todas as ciências aborda todas as perspetivas possíveis para descrever, explicar, prever e transformar o mundo através das técnicas por si criadas, mas não esgota de forma nenhuma tudo o que há para saber, porque os pontos de vista podem ser infinitos. Por isso, como a realidade é inesgotável, acreditar que toda ela pode ser conhecida integralmente não passa de superstição baseada no endeusamento das ciências ou de certas ciências, uma forma de superstição entre outras.

Sinto-me sempre defraudado e triste quando, nos painéis de aconselhamento e de consulta do governo não estão representadas em equidade as diferentes áreas científicas.  Por isso, provavelmente, a gestão sociopolítica  e económica no contexto pandémico tem sido tão errática e descredibilizada. Não basta conhecer o vírus, é preciso conhecer as pessoas e fundamentalmente respeitá-las na sua autonomia, na sua inteligência.
Faz falta democraticidade e cientificidade equilibrada na determinação do que se há-de fazer individual e coletivamente. Este propósito é fulcral, também, em toda a política, não apenas pela necessidade de bem decidir para bem fazer, mas principalmente porque é  um imperativo ético e moral.

O mistério e a procura

As perguntas ou interrogações só são possíveis quando alguma coisa nos espanta ou surpreende. Quando o que vemos, ouvimos ou sentimos não está de acordo ou não se conforma com a nossa visão do mundo, temos tendência a perguntar. Também nos interrogamos quando, à primeira vista, não compreendemos a realidade que somos ou a que se apresenta no nosso horizonte. Temos que ver o mistério para procurarmos seja o que for, já que o mistério é a realidade secreta e escondida, é ainda o segredo dos deuses. Para vermos o mistério necessitamos da fé de que algo não se mostra, só a partir daqui se pode procurar, supondo que existe o que não é dado. A crença de que existe o que não é dado imediatamente, consuma-se a partir do momento em que nos deixamos surpreender ou nos espantamos. Esse espanto não nos leva à fuga como os pássaros fogem dos espantalhos, mas antes ao movimento de investigação suportado pela nossa insaciável necessidade de matar a sede do conhecimento.