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quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

revolução

Presume-se que o termo revolução foi importado da astronomia,  a qual assim designa a descrição de uma órbita completa de um corpo celeste.  O uso do termo viria a conferir o seu significado atual que radica na revolução francesa como revolução por extensão semântica.  Assim, a partir deste modelo de revolução, temos uma primeira definição desta como mudança radical de ideias. 
                                                                                                     - infopedia




As revoluções científicas, políticas, económicas, sociais, artísticas, correspondem a processos complexos de mudanças que ocorrem dentro de um totalitarismo e culminam noutra forma totalitária. São assim sucessões de totalitarismos.

O totalitarismo intensificou-se provavelmente a partir da ciência moderna, no século XVII. Galileu (1564 - 1642) provocou um terramoto político na época em que viveu. A cúpula científica da igreja da época, apesar de compreender as suas preocupações e descobertas, não conseguiu integrar uma nova linguagem onde emergiu veementemente a palavra revolução.

Galileu foi revolucionário: inventou uma nova maneira de fazer ciência e também uma nova maneira de fazer política. Pôs as cabeças a girar, tal como a terra, e como ninguém está preparado para ficar como um louco, as reações à sua nova visão do universo foram terríveis, por isso o julgamento, a retratação e a prisão foram os últimos episódios da série fascinante da sua vida.

Mas como é que o totalitarismo surge na senda da ciência moderna?
Como reação ao totalitarismo da igreja de então começou a forjar-se um novo totalitarismo, o da ciência moderna.

 O totalitarismo assenta no facto de a ideologia dominante, num dado contexto histórico, evidenciar e inculcar, a todos os títulos, uma verdade, a verdade oficial, que tem o seu fundamento em qualquer coisa divina ou semelhante ao divino. Essa coisa pode ser a ciência, a religião, um sistema de ideias. Nos séculos XVIII e XIX a ciência substituiu a religião, surgiu a deusa ciência, o cientismo, a crença dominante era a de que com a ciência se dominaria a natureza, se descobririam as imutáveis leis do universo e, por conseguinte se resolveriam, mais cedo ou mais tarde, todos os problemas. O século das luzes, o século XVIII, era o século da razão, mas depressa foi destronado pelo século XIX, o tempo do romantismo, dominado pela emoção. Curiosamente esta emoção e aquela razão estão hoje na ordem do trabalho científico de descoberta da consciência humana, como evidenciam as investigações de António Damásio.

Como reação aos sucessivos totalitarismos, foram-se forjando os relativismos e evidenciando os ceticismos no século XX. Chegámos ao século XXI com a coexistência cada vez menos pacífica de totalitarismos, relativismos e ceticismos.

A opinião pública só aceita aquilo que é "comprovado" cientificamente, isto é, aquilo que é "verdade". A par deste espírito mantém-se e propaga-se o ceticismo, até porque muitos dos produtos mais ou menos mediatos da ciência foram péssimos em resultados, veja-se o exemplo da primeira forma de utilização da energia atómica: Hiroshima. Por isso também a própria ciência é muitas vezes rejeitada pelo cidadão comum que prefere não saber o que ela é, já que alguns dos seus resultados revelam consequências abomináveis. Por isso surgiram imensas críticas, fundamentalmente através da expressão artística, correspondente ao período do capitalismo pós-industrial, tais como a arte cinética, a arte concetual, o minimalismo, etc.. Contudo, apesar de toda a crítica, deveras interessante e criativa, permanecemos globalmente num mundo de duas esteiras paralelas: o absolutismo ou totalitarismo das ciências, económico-financeiras, humanas e físico-naturais e o relativismo/ceticismo das artes e dos movimentos anarco-sindicalistas e político-niilistas.

 Por isso provavelmente terá de desenhar-se em concreto um caminho que impregne a opinião pública de um novo sentido. Tal sentido conjugará em harmonia os interesses opostos por uma revolução que será antes de mais um revolução da linguagem, do uso da palavra. Essa palavra será a prosa poética e a poesia que, uma vez disseminada por muitos afirmará a diferença pela igualdade e a igualdade pela diferença. Essa palavra será sempre criativa e criadora e identifica-se com a boa filosofia e a boa literatura. Será essa palavra contagiante e contagiada, contaminante e contaminada que fará a revolução que superará o atual estado de coisas que não desembocará num novo totalitarismo.


domingo, 9 de dezembro de 2012

O Estado e a Política

 Para Aristóteles (384 a C - 322 a C) a política é a ciência que tem por objeto a felicidade humana e compõe-se de duas partes, a ética, com fim à felicidade individual e a política propriamente dita que tem por finalidade a felicidade coletiva da pólis (cidade ou estado). Afirmou o seguinte:

"Vemos que toda a cidade é uma espécie de comunidade, e toda a comunidade se forma com vista a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vista ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa o mais importante de todos os bens; ela chama-se cidade e é a comunidade política" (Política, 1252a). 

O estado é um agregado de elementos e há nele, com certeza, uma hierarquia que habitualmente se representa através de uma pirâmide. No vértice estará o rei, o imperador ou o presidente e na base o cidadão comum que não deixa de ter uma função tão importante como outra qualquer. O estado não é uma hierarquia de direitos e de dignidade dos cidadãos, apesar de apresentar uma hierarquia necessariamente funcional. Não é mais importante      o operário fabril do que o camponês, não é mais importante o engenheiro civil do que o operário da construção civil, não é mais importante o professor do que o aluno, etc.. Todos são igualmente essenciais e absolutamente complementares. As diversas funções ou categorias sócio-profissionais tornam possível a vivência organizada em sociedade, evoluem historicamente, nascem crescem e morrem. 

O Estado é por natureza Estado Social, a sua célula primordial é o cidadão que pertence a uma família que se encontra numa comunidade. Se por hipótese absurda considerarmos o Estado sem funções sociais então estaremos a anular o próprio Estado. O Estado ou é Estado Social ou então não é Estado.

É absurdo e estranho projetar ideias sobre a refundação do Estado como se fosse possível refundar o Estado e manter assim as suas essenciais funções. Portanto o Estado (social) jamais poderá ser posto em causa, se o fizermos estamos a colocar em causa a coesão necessária entre os cidadãos, famílias e comunidades. Estaremos a anular o propósito fundamental da política: contribuir para o bem individual e coletivo e garantir as condições de felicidade de todos os cidadãos. 

sábado, 8 de dezembro de 2012

ruído

A carência do século XXI é a ausência de tempo e de espaço para a reflexão, para o exercício calmo e sereno do pensamento, para a fruição da poesia e da prosa, para o saborear da boa literatura.


No quotidiano, um pouco por todo o lado, desde as escolas aos hospitais, dos serviços de finanças aos da segurança social, há um ruído ensurdecedor onde aparentemente se fala muito e se diz pouco, onde se grita sem se saber porquê. Nas discotecas o ruído faz-se sentir de tal modo que aí se torna impossível conversar. Imensa e atroz nuvem de poluição sonora, talvez a mais grave forma de conspurcação do planeta de onde nascem todas as outras poluições.

A televisão é produtora de ruído, quando, na interrupção dos conteúdos dos programas, faz irromper a publicidade a um nível de som muito mais alto, trata as pessoas não como espectadores mas como consumidores, já que o importante para quem a detém não é a cultura nem a informação, mas antes o desígnio de vender tudo a toda a gente.

Transformam-se as pessoas em autómatos: irão comprar os produtos das marcas que irromperam  no mais elevado nível de ruído. Embrutecidos, manipulados e estupidificados, os "caros" telespectadores, perdendo a sua capacidade  crítica e a sua autonomia, engrossando o caudal das massas ignaras, tal como desejam os donos do mundo com a sua ideologia (dominante), que já hoje se designa por "pensamento único" ou não pensamento, encaram a angústia da aporia socio-existencial, apanhados pelas teias ultra-liberais.

Cada um se quer fazer ouvir mais alto, salientar-se da massa anónima, dizer, eu estou aqui,oiçam-me, olhem para mim, não sou como os outros, sou muito melhor.

Sobrevive-se nos píncaros do individualismo e "comunica-se" em consonância com ele. Perpassa pelas vidraças das barreiras da nossa consciência  a constante dissonância cognitiva, individual e social. 


Precisa-se urgentemente de silêncio, de negação do ruído. No tempo da nossa vida, para muitos demasiado curta, o silêncio dá-nos quase tudo o que necessitamos para encontrarmos o sentido de tudo, da nossa existência e da dos nossos semelhantes, do princípio e da finalidade do universo, enigmas primeiros e últimos, perpetuamente escondidos numa eventual teoria de tudo.

Para além do silêncio há a música, a arte das musas, de combinar os sons e os silêncios numa sequência organizada no horizonte temporal. Também as palavras são música e é delas que tudo nasce. O ritmo, a prosódia, a musicalidade, o silêncio de pontos e vírgulas, as sílabas e as palavras, as colcheias, as breves e as semi-breves, as pausas de quem escreve ou fala numa cadência criativa: o antí-ruído. 

Para  o problema terrível do século XXI,o ruído ensurdecedor, há remédios: música, palavra, silêncio. A  arquitetura do presente e do futuro poderá ser a nova "santíssima trindade": silêncio, música, palavra. Não será necessária uma teoria de tudo para encontrar o sentido da vida e sentir  prazer na existência.

domingo, 25 de novembro de 2012

excesso

Se no século XXI há um evidente excesso, parece óbvio que é o das imagens: imagens artificiais, fundamentalmente divulgadas através da internet e da televisão, sem arte, sem cultura, pró-sensacionalistas, pró-pornográficas, pró-individualistas.A juventude, a nível mundial,já passa mais tempo no computador e na internet do que a ver televisão. 

Já há uns anos que foram publicados estudos sociológicos que evidenciavam esta realidade: a televisão já não é para os adolescentes e jovens adultos o principal ponto fixo da atenção, mas continua a sê-lo para para os adultos mais velhos, aqueles que têm social e politicamente a responsabilidade das decisões.

 Em 1993, Karl Popper e John Condry, publicaram o livro "Televisão: um perigo para a democracia", onde mostraram que a televisão é um poder quase divino para os seus detentores, por isso entendiam que deveria ser submetida a um controlo de qualidade, rigoroso e democrático. 

  O excesso de imagens e a carência de palavras leva as pessoas, e com elas, a sociedade, para um abismo que é  a incompreensão. O excesso e a vertigem da imagem contrapõe-se à lentidão necessária da palavra. Não se constrói um mundo (cosmos) por contraposição à desordem (caos)com imagens sem qualidade e em catadupa. É necessário o tempo da reflexão, do amadurecimento, da imaginação que só são possíveis pelas palavras. 

   É tempo de dizer: valem mais mil palavras do que uma imagem, é tempo de uma inversão dos valores para uma inversão da sociedade. Nos anúncios radiofónicos,como não há imagens visuais, são as palavras (imagens acústicas) que anunciam, mas sempre com uma prosódia que impede muitas vezes a compreensão e a reflexão, pela vertigem.
   
A semelhança da comunicação com os desportos radicais que inculcam a necessidade da velocidade, da vertigem e da libertação de adrenalina, é um indicador interessante do sentido que individual e socialmente se segue: evasão, alienação. 

   Para combater o excesso de individualismo impregnado na internet e na televisão, há com certeza um bom antídoto: a leitura dos livros, em papel ou em qualquer outro formato, porque ela é sempre lenta,por mais rápida que seja,  e por isso benéfica para o trabalho mental, afinal não há ética sem compreensão e  sem imaginação. 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Douta Ignorância

Filósofo é quem busca, com humildade, o conhecimento e a sabedoria. Do ponto de vista etimológico, filosofia significa amor à sabedoria, o filósofo é o amigo, o amante para o conhecimento, aquele que demanda a verdade, não aquele que acha que a possui, mas o que interroga, não é aquele que se fecha em certezas supostamente definitivas. O filósofo tem uma qualidade: douta ignorância. A douta ignorância equivale a uma disposição do espírito, a uma abertura da mente em relação à procura da verdade. Ao reconhecer a sua própria ignorância, o filósofo sabe que a consciência de que nada sabe é um princípio fundamental para superar as ilusões  do falso saber, ou de um saber que, apesar de limitado, se considera ilimitado. Quando devidamente praticado, o lema socrático só sei que nada sei permite que nos libertemos da tirania do hábito a que está submetido quem julga possuir a verdade.

domingo, 14 de outubro de 2012

político-social

sentimos os murros no estômago
da realidade político-social:
os neurónios lutam entre si
na ânsia da vingança da fome,
a revolta encontra-se à solta,
as pilhas alcalinas do fígado aquecem
na iminência do curto-circuito
que há-de abalar todos os vilões.
a vida é só uma, e mesmo no fio da navalha,
não no-la hão-de ladrar, os tinhosos.
a alma do povo é grande,
as unhas dilacerantes e retorcidas
serão arrancadas a sangue quente.
o tempo não é de calmarias,
é de raiva lúcida, de beijos fulminantes,
de abraços paralisantes,
de infatigável jogo de belas
contra verdadeiros monstros.
cantos, vozes, gritos, rufar de tambores,
armas pacíficas que dão ataques de caspa.
talvez a guerra, se vier pois que venha.
por que não hão-de os infortunados
defender a sua prole? 
não será uma lei natural?
alguém já venceu as forças da natureza?

quinta-feira, 14 de junho de 2012

poesia

POESIA

A poesia pode ajudar 
toda a gente,
oprimidos e angustiados,
alegres e redimidos,
resignados e coitados,
malvados e explorados,
ingénuos e astutos,
esperançados e pessimistas.

A poesia é o início e a continuação 
da pura revolução,
liberdade em movimento, 
é democracia
em estado original.
É árvore, aroma e bruma,
chuva, luz, estrela, lua.
Flor, criança na rua.
Poesia há só uma, 
a verdadeira e mais nenhuma.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

ontologia

A ontologia é a área de estudos que visa responder às questões:

1- O que é que há?
2- Porque é que há o que há?
3- Porquê o ser e não o nada?

O problema mais premente de qualquer ser humano é a determinação do seu ser pela resposta a questões existenciais através da sua prática de vida. Cada movimento que fazemos, cada olhar que projetamos, cada pensamento que nos ocorre, são respostas a questões implícitas ou explícitas. Mesmo que façamos qualquer coisa sem a ter pensado, esse fazer é uma resposta a uma pergunta implícita. Essa resposta é, nesse preciso momento, o fundamento do não ser de todas as outras possibilidades. Se a resposta for previamente pensada e determinada pela reflexão depois de ponderados a origem, o meio e o fim, então estamos a ser verdadeiramente humanos: racionais e conscientes, para além da irracionalidade ou inconsciência. O caminho que trilharmos é deste modo derivado de um processo ontológico. 

Não é possível escolher um caminho sem responder àquelas três questões.

O que é que há?
Cada ser humano tem na sua mente um conjunto mais ou menos delineado do que entende que há, dentro daquilo que legitima como existente. Para uns há deuses, centauros, quimeras, para outros há árvores, rios, terra, planetas. Para outros ainda poderão existir todos os tipos de realidade independentemente do seu grau de ser. Se não existirem deuses, com certeza não farão qualquer sentido os rituais que os invocam. Contudo há formas de realidade que não são dadas diretamente, nunca ninguém viu um eletrão ou um neutrão, nunca ninguém viu o deus ou o momento em que se terá iniciado o universo pelo big bang. Estas formas de realidade são o resultado e um processo de longas experiências e meditações. Mas ninguém pode sequer sobreviver durante um tempo razoável sem a sua ontologia, ainda que não conheça sequer o que significa ontologia.

Porque é que há o que há?
Esta questão leva-nos mais longe do que a simples elaboração de uma lista dos nossos existentes. Leva-nos a uma fundamentação. Consequentemente teremos de elaborar um argumentação que justifique as nossas opções. Essa argumentação terá de compreender premissas e conclusões que sejam aceitáveis, não apenas por nós, mas por qualquer ser humano que, conscientemente tente seguir o fio condutor dos argumentos. A historialidade, a mudança, as metamorfoses, são elementos essenciais que entram nesse corpo argumentativo. Poderemos perguntar porque é que há deuses, qual a sua natureza, função e finalidade. Dum modo geral existe tudo o que é de natureza material e energética e também tudo o que daí deriva. Há cérebro e mente e consequentemente todos os pensamentos, sonhos, ideias e ilusões neles contidos. Este trabalho de resposta de fundamentação de tudo o que há é um tarefa sem fim para a humanidade e só termina individualmente com a morte.

Porquê o ser e não o nada?
Esta questão creio que tem uma resposta no campo da fenomenologia. A causa última ou primeira do ser ou do nada não faz sentido procurá-la. O que nos dá a resposta a esta questão é um conjunto de evidências a partir de um fundo empírico e de uma constatação da consciência enquanto processo intencional. A origem do mundo e da vida, a finalidade de todos os processos mais ou menos complexos no vasto universo que somos nós e tudo o que nos rodeia serão sempre possivelmente um mistério. É este mistério, qualquer coisa inominável ou absurda, que suporta a vida e que leva os seres humanos em geral a quererem descobrir e inventar sempre mais e mais. Fernando Pessoa disse-nos que o maior mistério é haver quem acredite no mistério. Os mistérios são alimentados e suportados pelos mitos que explicam o nada e o tudo.

A ordem das questões aqui colocadas não significa que umas sejam primeiras ou mais importantes do que as outras, é arbitrária, tal como os pensamentos e imagens que vão emergindo nos sonhos que aparentemente não têm nexo racional nenhum. Contudo creio que ninguém resolve nenhum problema de fundo, muito menos de relações interpessoais mais ou menos complexas, se não passar por tentativas sérias de respostas àquelas questões. No fundo por tentar, por todos os meios ao seu alcance, combater o esquecimento e a ignorância, o maior dos males e raiz de todos os outros.

domingo, 3 de junho de 2012

prometeu



(a propósito das valas comuns na Síria)

Há por aí uma espiral
Gira e rodopia num absurdo sentido
Valas comuns
Flores de maio regurgitando a náusea do desamor
Moscas em olhos de crianças
Mãos de sangue, corações empedernidos
Terra triste, lamacenta, pestilenta
Humanismo ismo ismo
Poeira do universo num verso inverso
Mundo imundo furibundo
Terra tela telúrica
Para onde escorreu o teu leite
Mãe dos deuses e das quimeras
Aquele leite quente que amamenta
As crianças de idade tenra como a alface
Coalhou e endureceu
À força de Prometeu
Instrumento fundamental da civilização
Onde falta o pão, onde falta o pão
Há por aí buracos negros
Absorvendo o tutano dos homens
Criando lobisomens
Escurecendo o brilho da vida
Enquanto os povos ainda cantam
Os amanhãs e as primaveras
Hediondas hediondas
De  giocondas e anacondas
Nas ondas do mar que não é nosso
Caímos no fosso, no fosso
Sopa de osso osso            
Ouço caroço
Caracol de corninho ao sol
Lesma cascuda
Por isso te queimaste
E agora jazes como se nunca tivesses existido
Como se nada mas nada te fosse prometido e tudo a ti permitido. 

natureza morta



Duas bananas
Dez laranjas
Onze peras rocha
Seis maçãs amarelas
Quatro maçãs vermelhas
Quatro laranjas podres
Uma maçã amarela bichada.

Peguei naquelas quatro laranjas
E nessa maçã.
Já não eram laranjas
Já  só era meia maçã.

As que ficaram no fruteiro não se importaram.
Conformaram-se com o destino:
Serão tragadas por uma boca qualquer.
Não têm sistema nervoso
Mas têm casca e pele.
Nasceram, viveram e estão a morrer
Tal como nós,
Dentro da película fina ou cascuda que nos envolve.
Afinal não há diferença ôntica entre nós e a fruta, comida ou por comer.

sábado, 26 de maio de 2012

crise e consciência

Cogito ergo sum, penso logo existo, era esta a fórmula cartesiana da consciência. Existiu enquanto informadora da substância pensante e fundamento ontológico: duvido logo sou, se duvido penso, se penso existo. Esta fórmula de consciência durou desde o século XVII de Descartes (1596 - 1650) até ao século XX, até à criação da fenomenologia por Husserl (1859  - 1938). Para Husserl a consciência não é uma substância, a fórmula é diferente: ego cogito cogitatum, eu penso, mas penso sempre alguma coisa, a consciência não é um receptáculo que se pode encher de informação, é um fluxo de vivências intencionais. A característica fundamental da consciência é a intencionalidade. Este modo de intuir e de pensar a consciência foi revolucionário, permitiu compreender a crise das ciências, já que o seu problema fundamental coincidia com a crise da consciência. O trabalho científico é uma actividade intelectual incessante de compreensão, intuição e análise dos fenómenos. Esses fenómenos são o que vem à luz, o que é dado à consciência, sempre projectiva. Só a consciência enquanto fluxo intencional de vivências nos permite colocar qualquer coisa entre parêntesis, a épochê ou redução fenomenológica: isolar intencionalmente um conjunto de factos, opiniões, evidências, provisoriamente, para assim os analisar. Este método é válido para qualquer tipo de actividade cognitiva e requer uma atitude diferente da atitude natural e ingénua. O "objecto" da fenomenologia é o fenómeno isto é, tudo o que é dado à viva consciência e ao qual  temos um acesso directo, sem intermediários. Esse objecto é subjectivo e é também intersubjectivo porque os sujeitos comunicam entre si e sempre de uma forma intencional. Quando falamos em objectividade o que queremos dizer é apenas o resultado de um processo de intersubjectividade. A fenomenologia e o método fenomenológico são provavelmente o que de mais interessante e profícuo já se produziu até hoje no campo das ciências epistemológicas e na filosofia. 
A saída da crise é também uma saída da nova crise epistemológica que acontece neste início do século XXI. As ciências, nomeadamente as ciências sociais como a antropologia, a psicologia, a história, a sociologia e a economia, encontram-se numa crise profunda que se sente na cultura e no terramoto económico-financeiro e social em que o mundo vive hoje. Cada ciência apresenta a sua mundividência, já vivida pelos cientistas e não compreendida pelo sujeito comum. Estão por realizar quase todas as revoluções científicas porque elas não estão ainda devidamente vividas e interiorizadas por um número suficiente de sujeitos. Estão por concluir as revoluções freudiana, darwiniana, marxista, informática, etc. Todas juntas formam uma revolução cultural. Para sair da crise global é necessária uma revolução global, interpenetração e entrosamento recíproco de todas as revoluções parciais que, para se processarem e se concluírem, terão que derivar de uma revolução individual de cada um com base num método fiável e que permita alguma segurança: a revolução fenomenológica.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

VERDADE

Num dos mitos gregos, quando alguém morre, a alma separa-se do corpo e é conduzida ao Hades, reino subterrâneo ou dos mortos, e sujeita a um exercício: beber água do rio Lethes, o rio do esquecimento. Aí permanece durante algum tempo sem memória, e assim, apta a reencarnar num novo animal, que pode ser um  humano. 
Quando chegar a altura própria, entrará num corpo novo acabadinho de nascer e este novo ser terá que recordar o que a alma esqueceu por ter bebido água do rio do esquecimento. A vida dessa pessoa não será mais do que um incessante processo de aprendizagem, de recuperação da memória perdida pela morte do anterior recetáculo, o homem ou animal cujo corpo foi entregue à terra. 

Verdade, em grego,  é aletheia (αλήθεια), negação do esquecimento, privação do efeito da água bebida pela alma no rio Lethes, conhecimento.

A verdade é tema de mitos que muito ocuparam e ainda preocupam muitos pensadores, filósofos, poetas, cientistas, teólogos, artistas. 
Num mundo onde cada vez é mais difícil distinguir o verdadeiro do falso, veja-se a miríade de notícias falsas, como por exemplo, a propaganda das guerras que decorrem neste momento em várias partes do mundo, o cidadão comum é cada vez mais manietado, manipulado, "lobotomizado", principalmente pelos meios de comunicação como as TVs.

Xenófanes, filósofo grego (c. de 570 AC - c. 460 AC) escreveu qualquer coisa como isto:

Os deuses não revelaram, no início,
todas as coisas para nós; com o correr do tempo, entretanto,
pela pesquisa, podemos saber mais acerca das coisas.
Contudo, a verdade certa, nenhum homem a conheceu,
nem chegará a conhecer, nem os deuses,
nem mesmo acerca das coisas que menciono.
Pois ainda que, por acaso, viesse a dizer
a verdade final, ele próprio não o saberia:
pois tudo não passa de teia urdida de pressupostos. (1)


A verdade não é um processo acabado, é sempre relação:  entre pessoas, entre palavras e coisas, entre pessoas e palavras, entre palavras e palavras.

Entre pessoas, como oposição a mentira; 
entre palavras e coisas, como correspondência entre elas; 
entre pessoas e palavras, como adequação do pensamento ao discurso; 
entre palavras sobre palavras, como metalinguagem. 
Pode ser a adequação entre o pensamento e a realidade.
A linguagem (palavra) é a realização, por excelência, dos humanos.
Pela linguagem os seres humanos, na sua singularidade e pluralidade, recriam-se, ampliam o seu grau de consciência individual e coletiva. Tornam-se cada vez mais humanos no seu desenvolvimento numa dimensão espácio-temporal, cultural, num fluir imparável e histórico.

Buscam a verdade o detetive, o juiz, o cientista, o teólogo, o artista, enfim, toda a gente. 
Esta procura confunde-se com a própria vida. 
A vida é emoção, sentimento e razão, descoberta de cada um por si próprio e dos outros por cada um, subjetiva e intersubjetiva, em busca da objetividade, da verdade.

Entre o ser humano e a verdade há um manto adiáfano dificultando o conhecimento e mantendo suficientes camadas de esquecimento que garantem a vida caracterizada como mundo em perpétuo movimento.




(1) in  Brian Magee, As Ideias de Popper,  Cultrix, Un. S. Paulo, 1984, p.30

quinta-feira, 12 de abril de 2012

sentido


A norma é uma necessidade individual e social. Ela deriva dum princípio de ordem que existe em cada ser humano. A norma deriva diretamente da subjetividade tal como previra Protágoras, o célebre sofista da antiguidade clássica: o homem é a medida de todas as coisas. Essa medida é a bitola que dá sentido a tudo. Há uma premência constante para o encontro dum fio condutor que permite descobrir o sentido da vida. Esta é a descoberta de sentido que até pode ser encontrado no próprio absurdo, tal como o fizeram Sartre (1905 - 1980) e Camus (1913 -1960), ilustres representantes do chamado existencialismo ateu. Para eles a vida não tem sentido, há uma desarmonia fundamental entre: a eternidade e a finitude, a justiça e o sofrimento gratuito, o essencial da vida e a inutilidade dos esforços. A náusea de existir, como Sartre lhe chamou, não tem justificação racional, por isso a vida entronca no absurdo cuja consequência é o niilismo como negação do sentido. Para Camus viver é fazer viver o absurdo, por conseguinte, até se pode viver melhor porque não há que procurar nenhum sentido. A vida seria como que a reatualização sistemática do mito de Sísifo, aquele herói trágico da mitologia grega condenado pelos deuses a empurrar continuamente um rochedo até ao cimo de uma montanha de onde a pedra não deixava de cair devido ao seu peso. O sentido estaria na luta incessante para atingir os píncaros, isso seria suficiente para encher o coração do homem. Teríamos assim de imaginar Sísifo feliz.

 O sentido também poderá ser encontrado através do sagrado, pela vivência dos rituais religiosos que são apenas uma preparação para um novo começo, o da vida eterna, ao encontro de um deus. Ou também nos tão falados valores humanistas e ecológicos que se baseiam na dignidade humana como valor supremo e na natureza, casa comum que partilhamos com todos os outros seres vivos. A negação de sentido, como descoberta da náusea, ou a afirmação de sentido através de outras vias, são o fundamento processual da necessidade filosófica, e não apenas psicológica, de uma ordem, de uma medida, de um terreno avesso ao caos: o cosmos.

É corrente ouvir-se, em discussões quase diárias sobre a moralidade ou imoralidade dos atos dos outros: achas isto normal? É interessante ver que não é uma afirmação mas antes uma pergunta. Não adianta repetir vezes sem conta tal pergunta, é necessário um caminho de resposta, é preciso ir aos píncaros de que Camus nos falava. 

Normal e anormal são duas faces da mesma moeda, cara e coroa, a linha que os separa é também a linha que os une. Por isso, sem cair em relativismos perigosos, é imperioso que cada um construa com arte o seu próprio espelho e se descubra a si próprio na relação pregnante com o outro e talvez descubra que o par normal/anormal, tal como outros semelhantes, já não ajuda nada a compreender a realidade complexa porque carece de fundamento ontológico.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

VERDADE/MENTIRA


 gente a apagar parte do seu currículo, como licenciaturas, mestrados e doutoramentos, para ter acesso a um emprego/trabalho que lhe garanta a sobrevivência. No século XXI, mesmo com o avanço científico, político, moral e filosófico,  às vezes ainda é necessário mentir para se ter acesso à possibilidade de trabalho para sobreviver. A sociedade ainda teme o conhecimento, os empregadores temem que os seus subordinados saibam demais, os empregados temem que os patrões conheçam a dimensão das suas competências e dos seus conhecimentos e capacidades. 

Porquê esta desconfiança e aversão ao saber?

 O filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) afirmou, há mais de dois mil e trezentos anos, na obra Metafísica, que todos os homens têm por natureza, o desejo de conhecer, uma prova disso é o prazer das sensações que nos permitem esse conhecimento. 
Antes dele, Platão (428 a.C. - 348 a.C.) havia dito que o maior dos males é a ignorância.  A instituição escola, que existe um pouco por todo o mundo, e com a qual  concordamos, também vai ao encontro da defesa do conhecimento e da partilha de experiências e de saberes.
A aversão ao conhecimento é contranatura, conhecer e avaliar são duas faces da mesma moeda impreteríveis à sobrevivência do indivíduo e da espécie. 

Então porquê a mentira? 
Porque mentem alguns dirigentes políticos, porque se fazem falsas promessas?

Mentir é uma competência que se baseia na simulação, no faz de conta que é mas não é, que se aprende muito cedo, na aquisição da função simbólica pelas crianças. A mentira pode ser imoral, moral e amoral. É imoral quando se mente com má-fé; moral, quando as suas consequências são úteis para os utilitaristas, embora explicitamente nenhuma moral apele à mentira; e amoral quando não há nenhuma correspondência nem ligação  entre a mentira e os valores morais.
  A verdade e a mentira podem ter um sentido extramoral como também afirmou o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) num texto de 1873:

"O intelecto, enquanto meio de conservação do indivíduo, desenvolve o essencial das suas forças na dissimulação, pois esta é o meio de conservação dos indivíduos mais fracos e menos robustos, na medida em que lhe é impossível enfrentar uma luta pela existência munidos de chifres ou das poderosas mandíbulas dos animais carnívoros. É no homem que esta arte da dissimulação atinge o seu ponto culminante: a ilusão, a lisonja, a mentira e o engano, a calúnia, a ostentação, o facto de desviar a vida por um brilho emprestado e de usar máscaras, o véu da convenção, o facto de brincar de comediante diante dos outros e de si mesmo, em suma, o gracejo perpétuo que em todo o lugar goza unicamente com o amor da vaidade, são nele a tal ponto a regra e a lei, que quase nada é mais inconcebível do que o aparecimento, nos homens, de um instinto de verdade honesto e puro." (1)

Podemos entender a verdade e a mentira para além da  moralidade, também  porque é a justificação da justiça e tem duas fontes, a tradição e a ética. 
A tradição é um conjunto de respostas existenciais para as quais não foram feitas perguntas, é um processo de transmitir sem questionar profundamente, é a assunção de modelos mentais e comportamentais sem crítica, sem fundamentação, em muitas sociedades, o casamento, por exemplo, é uma tradição.
A ética é o pensamento que fundamenta e legitima a moral que cada um assume no seu lugar, no seu contexto, é a reflexão sobre o porquê e o para quê do agir humano. É a consciência na ação que preserva a diferença, o respeito e a igualdade de todas as pessoas.

Mas, antes de mais, há o instinto de sobrevivência individual e familiar, anterior a qualquer moral e a qualquer ética. A ética pode justificar a mentira na medida em que esta não é um fim em si mesma, mas um meio para atingir fins exteriores à própria mentira, ou seja, mentir para um mal menor ou para um bem maior. Por isso os médicos por vezes mentem aos doentes, por exemplo com os placebos, os empregados aos empregadores, os dirigentes políticos uns aos outros e aos governados, os amantes aos amados.

As nações deviam ser todas Estados de Direito com leis fundamentais legitimadas pela verdade, pela ética e pela moral,  mas, mesmo quando o são, elas nem sempre são respeitadas, até por quem as faz. 
Não cumprir e não fazer cumprir uma lei que se fez é incorrer numa contradição racionalmente insustentável, é um atentado à ética e à moral pela implementação da mentira existencial.
Esta contradição  leva à angústia do cidadão que, quando consciente da sua situação, consegue sair da resignação para um etapa nova da vida social e política e tornar-se parte ativa num processo de mudança a que se chama revolução, necessariamente verdadeiro, porque só com a verdade se superam as contradições que geram injustiças e se alcança um estado de igualdade e de liberdade.

Nota (1): Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral, Friedrich Nietzsche, 1873, adaptado.

quinta-feira, 29 de março de 2012

O mito de Narciso

O epílogo do ensaio de Orhan Pamuk "O romancista ingénuo e o sentimental", fala de de um livro de Lukács antes de se tornar marxista, "A teoria do romance", onde o autor "tenta descobrir por que é que a humanidade tem necessidade espiritual de um espelho (um espelho à sua medida, personalizado) chamado romance." (1) Depois de ter lido o ensaio de Pamuk senti necessidade de pensar a questão do espelho, enquanto pintura, romance, filme, peça de teatro ou  trivial objeto onde nos vemos todos os dias na casa de banho, no quarto, no corredor da casa, no carro, no elevador do prédio.  Os nossos olhos e os dos outros, quando os fitamos como se estivéssemos a jogar ao jogo do sério funcionam como espelhos. Diz-se que os olhos são os espelhos ou as janelas da alma. 
A palavra espelho deriva do latim speculum que originou o verbo especular, cujo significado primeiro é refletir. Outros significados se seguiram como, por exemplo, o de especulação financeira, dado que o dinheiro é uma realidade virtual, um produto mental, simbólico. O espelho enquanto objeto ou parte de uma paisagem (espelhos de água naturais ou artificiais), é a primeira forma de realidade virtual. O que se vê no espelho é virtual, apenas existe na mente de quem olha ou observa, é a imagem virtual que num plano é simétrica à realidade material que lhe deu origem. 

Hoje há outras fontes de realidade virtual baseadas nas tecnologias de ponta derivadas da conjugação da informática com a biologia onde a psicologia trabalha para investigar novas formas de perceção. A realidade virtual é sempre mental, é sempre um fenómeno cerebral. Mesmo que saibamos que dois espelhos paralelos se refletem até ao infinito, esse conhecimento só é possível porque experimentámos esse facto em direto, pela observação, que é um processo de mentalização. Por isso nunca nos conseguiremos desenvencilhar do dilema kantiano das coisas para nós e das coisas em si. Nós sabemos que as imagens estão lá, refletidas até ao infinito, mas não o podemos comprovar, só o podemos pensar. Descartes tivera toda a legitimidade quando afirmara que a razão ou pensamento é mais certeira do que os sentidos que nos enganam. A verdade  é está no pensamento e não noutro lado qualquer.

Mas porque é que qualquer ser humano tem necessidade de um espelho à sua medida?

Não acreditamos que seja por ordem ou vingança dos deuses como acontece no mito de Narciso de acordo com Ovídio e Pausânias. Mas também não podemos esquecer ou ignorar este mito. 
Na versão da obra "Os Mitos Gregos" de Robert Graves, baseada em Ovídeo, Pausânias, Cónon e Plínio, o vidente Tirésias anunciou à mãe de Narciso, numa consulta, que o seu filho viveria até longa idade, desde que nunca se conhecesse a si próprio. Narciso era de uma beleza avassaladora e destroçava corações de ambos os sexos que rejeitava com crueldade por ser muito orgulhoso. Ele só podia ser belo,  era filho de um deus (Cefiso, o deus-rio) e de uma ninfa (Ninfa azul Liríope) que o deus cingiu e seduziu. Uma outra ninfa surge na história, a ninfa Eco que havia sido castigada por Hera porque ela lhe desviou a atenção do olhar ciumento sobre as ninfas concubinas de Zeus. Por isso Eco apenas podia repetir as palavras que os outros diziam. Mesmo assim conseguiu aproximar-se de Narciso, mas ele fugiu dizendo: mais depressa morreria do que te deixaria dormires comigo.

Narciso tinha um persistente admirador, Amínio, que se suicidou à sua porta e pediu aos deuses que lhe vingassem a morte. Artemisa considerou esse desejo e fez com que Narciso se enchesse de amor e ao mesmo tempo que esse amor nunca se consumasse.

Narciso abeirou-se de um regato de águas límpidas e, quando exausto, se debruçou sobre ele para mitigar a sua sede, enamorou-se da sua própria imagem aí refletida. Tentou enlaçar e beijar o rapaz que via, mas rapidamente se apercebeu que era ele próprio, e assim ficou horas e horas a fio  a olhar as águas. Sentia-se minado pela dor, mas ao mesmo tempo esse sofrimento era delicioso, pelo menos o outro "eu" ser-lhe-ia sempre fiel acontecesse o que acontecesse. Eco sofria com ele apesar de não lhe ter perdoado. Nela ecoou a sua voz: "Ai!... Ai!..., quando ele enterrava no peito um punhal; e as suas últimas palavras: "Oh, meu jovem, meu inutilmente bem-amado, adeus!"
"O sangue dele embebeu a terra em redor, e desta brotou uma flor, um narciso branco de corola vermelha, do qual ainda hoje se extrai um bálsamo (...) que aconselham ser de grande utilidade para as infeções dos ouvidos e um vulnerário que cura feridas e alivia o cieiro". (2)

Existem muitas outras versões mais ou menos populares do mito de Narciso e parece que têm uma coisa em comum: o amor próprio (narcisismo) e a morte que acaba por ser o resultado do anúncio do vidente Tirésias.  A questão ou tema central do mito de Narciso é a possibilidade do conhecimento. Se ficarmos agarrados a nós próprios, ensimesmados, todo o sentido da vida desaparecerá, cairemos no absurdo que trará inevitavelmente a morte, a libertação de todo o sofrimento que porá termo à náusea da vida. Aqueles que são manietados (voluntariamente ou não), enquanto assim permanecerem, jamais se conhecerão a si próprios, jamais serão felizes, e ao mesmo tempo impedirão que os outros vivam a felicidade. Por isso a vida enquanto processo incessante de conhecer é sempre breve, decorre num tempo que não é o tempo linear aristotélico, soma de antes e depois, mas é o tempo sentimental, subjetivo, consciente, refletido, de que Pamuk nos fala no seu ensaio "O romancista ingénuo e o sentimental".
O conhecimento (absoluto) só é acessível aos deuses, quem não é deus apenas terá acesso a imagens. A visualização incessante das mesmas trará necessariamente a morte. Essa morte é ao mesmo tempo uma transformação, Narciso dá lugar a uma flor que evocará a memória do seu ser. O mito funciona como um paradigma e permite-nos saber com o que podemos contar: se a nossa atitude for como a de Narciso semearemos sofrimento.

Se o conhecimento é vedado aos não deuses e também aos homens, não lhes é de todo vedada a procura da verdade. Essa procura é sempre feita através de um espelho: uma obra de arte da literatura, do cinema, da música, da pintura, da escultura, arquitetura, etc.. É na fruição (criação ou interpretação) das diversas formas de arte que ocorre a verdade (desocultação) que contraria o esquecimento, neglicência da própria vida.

É na obra de arte que se encontra o alter-ego, uma necessidade premente de qualquer ser humano. O ego não é nunca um "eu puro", solipsista, é sempre uma síntese da relação do "eu" real com todos os outros "eus". Mário de Sá Carneiro evidenciou-o bem no poema:

Eu não sou eu nem sou o outro, 
Sou qualquer coisa de intermédio: 
     Pilar da ponte de tédio 
     Que vai de mim para o Outro. 
                  
(Lisboa, fevereiro de 1914 

Tal como num jogo de espelhos que nos dá o infinito, a vida com pregnância, aquela que se vive de um modo próprio, sem má-fé, sem renúncia dos legítimos desejos do eu, também nos dá, não o infinito, mas o sentido do infinito, que consiste nessa busca incessante daqueles que não querem morrer ignorantes. A filosofia ensinou-nos, há mais de dois mil e quinhentos anos, que a ignorância é o maior dos males. A ignorância é sempre um não conhecimento de si próprio, um esquecimento, uma ausência de interação com o outro, principalmente naquilo que o outro apresenta como a superação de si próprio: a obra de arte. A vida estritamente individual, para além de necessária criação de autonomia pela interação compreensiva com o outro, também pode ser uma obra de arte, desde que seja a busca incessante de um centro. Este centro descobre-se progressivamente pela reciprocidade, no dar e receber, na relação entre os corpos, e não na relação entre o corpo e a sua imagem. A relação com o espelho no sentido narcísico é importante mas é apenas o início ou o reinício da descoberta de si próprio, uma pausa temporária e cíclica que coloca entre parêntesis, provisoriamente, a relação com o outro, um ponto de situação existencial, base para a criação de sentido que se vai adivinhando pelo fio condutor de sentimentos, emoções e razões: a peça do puzzle que configura os humanos na sua interessante ambiguidade.


(1) O. Pamuk, O romancista ingénuo e o sentimental, Ed. Presença, 2012, p. 131
(2) R. Graves, Os Mitos Gregos, Dom Quixote, 3.ª ed, 2005. p. 293

quarta-feira, 28 de março de 2012

metafísica




A luz iridescente diz-me que o mundo
Não é a preto e branco.
Golpes de espada incandescente
Ardem na pele que me protege.
O mundo está aí: guerra e paz, amor e ódio, tristeza e alegria.
Os fios de nuvens emanam uma réstia de cebolas.
Lágrimas, solução aquosa de cloreto de sódio,
Nascem da fonte da amargura, escorrem deliberadamente no final feliz
Do filme do cinema da avenida.
Tudo são objetos multiformes,
Mudança que mal se vê,
Que mal muda,
Que muda mal.
Autoestradas, nuvens virtuais, segundas vidas. (second life)
Tão difícil governar o meu mundo.
E o dinheiro, o perlimpimpim, a agnosia, a magia.
A neve artificial no carnaval.
O gelo dos dias secos.
As manchas na pele e os pelos
A crescerem como erva daninha para arrancar e para cortar.
O tédio dos dias cansativos, extenuantes, sem brilho e sem silêncio.
É este sem sentido o sentido sentido.
Aí está, afinal de contas, a metafísica.
O não sentir nada, o não querer saber.
Se há mundo, beijos, árvores e boa comida.
Olhares diretos e discretos.
Intenções, ações e melindres.
Gestos e insinuações.
Descobrimentos e aventuras.
Viagens do passado e do futuro.
Há cidades cintilantes, navios urgentes, rios caudalosos.
Cinemas e teatros, concertos e provas de vinho, estuários
E rochas, gaivotas, gatos e hienas.
Tudo sabe a metafísica, a verdadeira realidade.
Por isso há que correr o mundo, fugir do nada
Como as línguas de fogo que naufragam as naus.
Como as nuvens altas, divinas, que só querem pairar
Para ver como param as modas
Para os deuses saberem como loucos são os homens e as mulheres
Que não decidem nada
Que não são donos de nada
Que têm os sonhos todos
Que não têm sonhos nenhuns.
Quanto não vale a metafísica.
Não fora ela e lançar-me-ia no abismo
E entraria definitivamente na história do nada.
Não somos nada, viemos do nada e para o nada vamos.
Existimos como as pedras que caem quando as lançam
E não gemem quando as pisam.
É este o nosso sentido. O não haver sentido nenhum.
O viver acabrunhado, ai a crise de valores, ai a crise económica.
Ai  o Papa a beijar a mão do fidel castro por amor do ópio do povo.
É isto que nos alimenta, a vertigem da náusea que está em todo o lado.
Na broca do dentista que nunca mais para, nas páginas da náusea do sartre,
No vómito da criança que devolve o que não quer, na metafísica do Schopenhauer.
No cão que treme de frio e de tristeza porque o amordaçaram para não ladrar,
Para não incomodar, para não suscitar a sensibilidade fina dos vizinhos.
E a lei no papel fabricado pelos operários mal pagos da fábrica da encosta da serra
Que engole a água e não deixa viver os peixes.
E os cheques em branco que todos os dias passamos, de tudo a todos.
A ignomínia, o dislate, a estupidez que não é crime.
O desvario, a impotência, a opinião pública, a opinião publicada.
A merda, que não é apenas uma questão das moscas.
As alfaces, tão bonitas, tão verdinhas, tão frescas, a crescerem na merda sem metafísica.
A metafísica não se vê, mas ela acaba por ser a única razão de viver, ou a única razão de não morrer.
É límpida como o paraíso, bela como a utopia.
Ai se não fosse ela.
Estaríamos aqui sem pensamento ou pensando que as coisas têm uma finalidade
Quando a única finalidade é elas não terem finalidade nenhuma.
Pensaríamos nos príncipes encantados com suas princesas dos contos de fadas, nos castelos da nobreza.
 Pensaríamos numa ligação entre o corpo e a alma.
Que vãs ilusões traríamos no bolso para resolver todos os problemas.
A quadratura do círculo, as criancinhas a morrer de fome no corno de áfrica, a miséria nas ruas de paris, de lisboa e do cairo.
E a miséria que não se vê. E a miséria que se inventa para justificar a tendência genuína da prática da caridadezinha.
Não fora a metafísica e estaríamos aí todos alinhadinhos, pobrezinhos e asseadinhos na fila da sopa dos sem-abrigo.
Não fora a metafísica e estaríamos todos de arma em punho a defender a gloriosa nação, a pátria e a mátria, à beira das trincheiras para tombarmos e apodrecermos e sermos servidos mortos como se servem os heróis.

sexta-feira, 23 de março de 2012

a matemática e o corpo

Pitágoras (580 a.C - 500 a. C) terá sido o fundador da matemática para além de ser considerado também o pai da filosofia. A partir das ideias pitagóricas foi possível o platonismo e tudo o que se lhe seguiu tal como as cosmovisões de Galileu, Kepler, Newton e Einstein. Para os pitagóricos, (creio que o somos quase todos, mesmo aqueles que nunca ouviram falar de Pitágoras), tudo é número. Foi por isso que Descartes (1596-1650), filósofo e matemático, criou o chamado plano cartesiano que depois de explorado e aperfeiçoado possibilitou o avanço da geometria e convenceu-nos de que a realidade pode toda ela ser representada por equações do tipo f(x)= x2. O ecrã do computador é uma actualização do plano cartesiano. Qualquer figura em qualquer contexto pode ser descrita através do rigor da geometria analítica. Galileu (1564-1642) também partilhava uma concepção semelhante: a natureza está escrita em caracteres matemáticos, embora se distinguissem as qualidades primárias (peso, extensão, volume, forma) das qualidades secundárias (cheiros, cores, sabores, sons) das coisas. As primeiras, objectivas e quantificáveis e as segundas, subjectivas e não matematizáveis. No entanto, com a evolução técnica, progressivamente a realidade, do ponto de vista cognitivo, tem vindo a ser absorvida pela matemática. Hoje as cores e os sons são expressos através de equações matemáticas, por exemplo, no intervalo do espectro electromagnético da luz, cada frequência equivale à sensação de uma cor.

Já no século XX Einstein veio a afirmar que a matemática e a física são uma mesma linguagem. Cumpria-se assim o vaticínio e o veredicto Pitagórico: tudo é número.
E assim, durante 2600 anos a humanidade repetiu vezes sem conta a "oração": tudo é número. E creio que ainda hoje continuamos nesta senda: tudo é matematizável. E até professamos que o que não está já matematizado ainda não é conhecido. É até estranho que não haja o prémio Nobel da matemática.
A matemática é o produto mais abstracto que a mente humana pode criar (ou descobrir). É forma sem conteúdo, tal como a lógica, não fala de nada, nada refere, é apenas estrutura. Por isso ela parece tão difícil para muitos jovens em idade escolar. A matemática é o exercício por excelência do intelecto e por ter sido tão valorizada, entrámos numa dinâmica de aprendizagem intelectualista.

O intelectualismo exacerbou o intelecto como se o ser humano fosse apenas pensamento sem corpo. Por isso também a civilização ocidental negou e escravizou o corpo ao longo dos séculos. O prazer corporal foi considerado pecado, já o prazer intelectual não. A emoção nem sequer teve direito a fundamento ontológico, apenas a razão foi valorizada e mesmo deificada, porque considerada o princípio, o fim e a fonte de tudo o que seria de pensar. Só na segunda metade do século XX a emoção, e com ela o corpo, começam a ser tidos como realmente importantes e determinantes na compreensão, na educação e na própria vida. Com Daniel Goleman aprofundou-se o conceito de inteligência emocional e com Damásio a relação entre razão e emoção.

Encontramo-nos, provavelmente, na transição para um novo paradigma em que o corpo poderá vir a ser aceite sem preconceito, já que todo ele é uma unidade de emoção e de razão. Os tempos vindouros serão talvez interessantes porque o corpo e as relações entre os corpos já não sofrerão o estigma do pecado que será apenas uma ideia do passado. Por isso gente tão interessante como Eduardo Galeano (n. 1940) jornalista e escritor  uruguaio diga com toda a razão: "a santa madre igreja corrigirá o sexto mandamento que passará a mandar festejar o corpo."

O corpo vale mais do que o número porque o corpo é matematizável e a matemática não é corporizável. Mas o que importa é que sigamos cada vez mais a vivência dos corpos na sua emoção que procede em muito dos sentimentos, e que a valorizemos tanto como o intelectualismo matemático. Talvez aí, nessa clareira emocional e consciente, num equilíbrio entre razão e emoção, a vida passe a ter um sentido que não se encontre na morte ou no que virá depois dela e assim seja um fim em si mesma. Como resposta às crises políticas e económicas surge cada vez mais a expressão "as pessoas não são números", precisamente porque até agora foram mesmo números.

Os estudos neurológicos apontam para maior felicidade intelectual quanto maior for a felicidade corporal. Talvez haja um novo Renascimento que aponte para o lema "mente sã em corpo são", tal como nos tempos áureos da antiguidade clássica, mas com uma diferença: corpo e mente como duas faces da mesma moeda. Já não faz sentido o dualismo cartesiano do corpo e  da alma como se o corpo fosse uma máquina comandada por um fantasma, tal como denunciou Damásio na obra "O erro de Descartes".

A crise que ora vivemos é também a crise dos dualismos que estão a entrar no campo do absurdo e portanto a ser desviados do domínio científico: corpo/espírito, feminino/masculino, feio/bonito, céu/inferno, alto/baixo, gordo/magro, curto/comprido, centro/periferia, etc. ... A realidade é muito  complexa e não pode ser compreendida a partir de balizas duais e simplistas sob pena de não se progredir na descrição compreensiva da mesma. Por isso cada vez mais a actividade científica é trabalho cultural e filosófico.






quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

grandes momentos


A história é um incessante devir, uma constante mudança. Contudo, já não há, como já houve, o finalismo, ou pelo menos, o finalismo da mesma maneira. Mas continua a viver-se ainda em função do futuro e não do presente. Agora sobrevive-se numa quase desgraça, sem segurança, em queda provável a qualquer instante. Ainda se vive à espera dos grandes momentos, esquecendo que cada momento vivido é sempre o grande momento. Aguarda-se o momento de êxtase, de emoção redobrada, como o autêntico sentido da vida. Reina de modo sub-reptício a "norma" do querer ser o que não se é ou o que não se pode ser. A melancolia anda por aí e até é, por vezes, elogiada. A demência e a estupidez, irmãs siamesas, vagueiam, são respiradas, comidas, bebidas e regorgitadas. Deambulam por essas ruelas, ruas, vielas, estradas e auto-estradas, zombies absolutamente reais e avassaladores. Espectros quase fulminantes, envoltos num fatalismo indecente que gera a miséria do corpo e do espírito. Não haverá remédio para tanto desânimo, para tanto desencontro, para tanto dislate? Até já se proclama o direito à infelicidade! Até já há receitas para quem se quiser tornar num doente mental! E o respeito e a dignidade não serão direitos éticos elementares? E a liberdade, a liberdade sem medo, sem peias, não terá direito a ser ressuscitada?

 Para além de tudo, antes de tudo e depois de tudo, continuo com a crença de que a paz saudável ainda é possível: com a sua construção hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo. Afinal o mundo é o que nós fazemos dele e não uma fatalidade inevitável de um qualquer génio maligno todo poderoso.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

incerteza e relativismo

O século XXI iniciou-se na senda da incerteza. A incerteza é a origem da insegurança. A insegurança gera medos, fantasmas e previsões de apocalipses. A incerteza é também o lastro do relativismo. No relativizar constante há sempre um apelo ao contexto. Vive-se muito no mito do contexto que Karl Popper justamente denunciou. Se o contexto não permite legitimar nenhuma forma de violência, que, fenomenologicamente, é um conjunto de factos, também não permite justificar nenhum outro facto por mais primoroso que seja. A quebra da  certeza pode gerar feitos revolucionários. Quando Galileu, no século XVII, apontou o telescópio para os céus e percebeu que os astros não eram esferas perfeitas e que o mundo aristotélico-ptolemaico não passava de uma ilusão, deu origem a um novo sentido da palavra revolução. Até aí revolução significava apenas um movimento circular de 360 graus. 
Na escola primária todos aprendemos o significado dos sólidos de revolução: cilindro, esfera, cone. Estes sólidos obtêm-se pela revolução completa de um plano ou de parte de um plano, que os desenha no espaço. 
A palavra revolução passou, então, a ser aplicada também ao planeta Terra, porque Galileu descobriu que esta se movia. A autoridade religiosa percebeu que Galileu pôs em causa a sua suposta infalibilidade. Lembremo-nos que ainda hoje vigora o dogma da infalibilidade da palavra do Papa. A palavra revolução passou, a partir do século XVII, a ter um significado político e social que até aí não tinha acontecido. Por isso o mundo, historicamente, passou a ser interpretado como uma sucessão de revoluções e de processos mais ou menos estáveis entre essas mesmas revoluções. Ser revolucionário significa trabalhar consequentemente para uma inversão dos valores e da realidade, tanto nas ciências como nas políticas. Pode dizer-se que a crise de 1383-85 em Lisboa foi uma revolução, que o 25 de abril de 1974 foi uma revolução, que a descoberta da lei da gravitação universal foi uma revolução e que a decifração do genoma humano também foi uma revolução. Revoluções político-sociais e revoluções científicas. As revoluções são sempre períodos de grande turbulência que começa por ser sempre turbulência mental e acaba por ser  social. Por conseguinte as chamadas ciências humanas como a história, a psicologia, a sociologia e a antropologia são, no século XXI, determinantes para uma compreensão cabal do mundo globalizado.

As principais descobertas científicas do final do século XIX e do século XX trouxeram mais incerteza e mais relativismo. Não porque não ajudem a compreender mais e melhor os meandros do universo, mas porque não foram suficientemente trabalhadas pela educação e pela cultura. Progressivamente veio a verificar-se que o universo é hiper-complexo e que à medida que se avança no conhecimento, mais depressa se avança na consciência da ignorância. Por outras palavras, quanto mais se sabe muito mais há para saber.

Charles Darwin (1809-1882) com a teoria da origem e evolução das espécies, colocou o homem no reino da natureza, tornou-nos definitivamente semelhantes aos macacos e destronou a ideia de homem deificado, criado à imagem e semelhança de Deus, quase omnipotente e omnisciente. O homem saiu do seu pedestal e ganhou pés de barro.

A tectónica de placas (1915, Wegener) fez-nos compreender que habitamos um planeta que não só se move no espaço como tem superfícies que se movem. O nosso planeta deixou de ser um lugar "seguro", está em constante mudança geológica.

A teoria da relatividade geral (1916, Einstein) permite-nos compreender que o espaço e o tempo são moldados pela matéria e pela energia. Estas são duas faces da mesma moeda. Matéria e energia são reciprocamente convertíveis. O espaço deixa de ter o carácter tridimensional, homogéneo e isotrópico e passa a ser uma entidade a que podemos chamar espaço-tempo, estudada pela física agora identificada com a matemática. A distância mais curta entre dois pontos deixou de ser uma linha recta, a velocidades muito próximas da velocidade da luz (cerca de 300 000 Km/s) a dimensão tempo quase desaparece, a soma clássica das velocidades já não é válida, etc.. O turbilhão mental provocado por estes novos paradigmas explicativos leva-nos a relativizar praticamente tudo e é ao mesmo tempo propiciadora de pânico. A energia nuclear para fins pacíficos e militares só foi possível depois do trabalho pioneiro de Einstein, ela tornou o nosso mundo mais inseguro, mesmo contra a vontade dos cientistas com ética, como parece ser o caso do descobridor da fórmula E=mc2.

teoria do Big Bang (1927) segundo a qual o universo teve um início e provavelmente não vai ter um fim, dado que se encontra em expansão.  É extraordinariamente difícil  ou impossível compreender como é que tudo se gerou a partir dum ponto infinitamente pequeno que originou tudo o que existe, desde o vazio até à massa-energia e ao espaço-tempo.

A teoria quântica (1926) de Bohr, Heisenberg, Schroedinger e outros, que nos permite perceber como é que os seres humanos e todo o universo são formados: de moléculas e átomos, e estes, por sua vez, de partículas sub-atómicas. Lembremos o princípio de incerteza de Heisenberg, que também, por extrapolação, pode ser aplicado às chamadas ciências humanas: é impossível determinar com exactidão a velocidade e a posição de uma partícula sub-atómica, por exemplo de um electrão. A realidade só pode ser conhecida teoricamente. Não é possível conhecer, como já afirmara Kant, as "coisas em si", como se elas não fossem observadas. A observação altera os fenómenos observados. O que quer que seja a realidade, não o sabemos, e provavelmente nunca viremos a saber, mesmo a chamada realidade social e humana que, aparentemente, é de todas  a mais complexa.

A estrutura do DNA (1953), decifrada por Watson e Crick, trouxe-nos uma ideia de como funciona, na intimidade, a transmissão hereditária, mas ao mesmo tempo permite a manipulação genética que gera cada vez mais insegurança do ponto de vista político- social. O apuramento das espécies, a clonagem e a eugenia já andam por aí com eficácia crescente.

Lévi-Strauss (1908-2009) formulou a teoria do interdito do incesto a que corresponde a exogamia como laço social primordial, no domínio das ciências das sociedades. Mostrou-nos que o "parentesco" está no centro da Antropologia que estuda o homem na sua dimensão social: as regras de aliança, de filiação, de residência ou de perpetuação das populações. Há factos humanos de natureza simbólica com formas invariáveis em contextos diferentes. Por isso percebemos que, para além das diferenças culturais, há estruturas humanas universais comuns a todas as culturas. Esta evidência não é suficiente para afastar de vez práticas "culturais" eticamente inaceitáveis como a excisão do clítoris.

 Sigmund Freud (1856- 1939) deixou-nos a teoria tópica das pulsões. Criador da psicanálise, mostrou-nos que grande parte do comportamento escapa à racionalidade e que o homem singular é dominado por forças ocultas que desconhece e que não controla. Freud conseguiu instalar-nos definitivamente no pessimismo, a natureza humana é capaz dos maiores prodígios mas também dos maiores horrores, ela é dominada pelos mecanismos de defesa do ego e caracteriza-se por uma dialéctica incessante entre o consciente e o inconsciente, entre as instâncias que constituem o aparelho psíquico: id, ego e superego. Também, definitivamente, ficámos a saber que a sexualidade é o grande motor do desenvolvimento humano e que os sonhos podem ser a realização de desejos recalcados.