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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Mirtilo







Tecido de sons  doce-ácidos
Roxo como mãos doridas 
Nobre de  céus tempestuosos
Bosque selvagem onde amanhecem 
Os corpos dos amantes - ar puro
De ávidos olhos à flor do dia
Pensamentos navegando rio acima
Até à fresca  nascente
Vive-nos 
Como se abríssemos os olhos
Sem os tentar fechar
Leva-nos 
Como castelos onde  brotam  viçosos
Árduos corações abraçando o destino
Inelutável no festim da vida

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

em cada manhã


revejo os sonhos
se pesadelos só sonhos
se momentos de felicidade
apenas interrompidos
por pausas de reflexão circunstancial
realidade
onde há uma verdade 
subdividida 
em muitas 
reunidas eclodem 
numa verdade maior
como o calor das brasas
da lenha consumida
que se transforma em cinza 
muito macia e leve 
desvanece tudo o que é
verdade toda estranha
realidade cinzenta
se só pode ser cinza
ao menos que seja cinza feliz.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

ficção

Tudo no mundo é ficção, sustento ou fundamento dela. Nada existe para além disto. Palavra, pensamento, imagem, sonho, perceção. Quando fecho os olhos nenhuma imagem mais existe para além de tudo o que apanhei na minha rede. Sou sem querer, um pescador incansável, pesco incessantemente e tal como qualquer pescador, passo a maior parte do meu tempo a remendar as redes. Posso parecer idealista, mas a realidade só o é a partir do momento em que há sentido, sonho ou pensamento. A música que oiço é uma ressonância de todas as músicas que já escutei e por isso me leva a um estado de emergência existencial. O que é válido para a música é válido para os seres vivos, animais ou vegetais, para as pessoas em todas as suas idiossincrasias, para todos os livros que li ou debiquei, para todas as paisagens, temperaturas e sensações que já experimentei. Toda a imensa realidade que me rodeia e me atravessa, na maior parte do tempo sem eu dar por isso, me impele para o sonho e para a vigília, sempre aí remendando a rede, que com o tempo se vai rasgando, consoante os peixes que por lá passam e as águas mais doces ou mais salgadas, mais calmas ou mais revoltas, mais puras ou impuras que a atravessam. A inexorável intromissão de outros pescadores com outras redes no meu ser de pescador e no meu ser de rede, muitas vezes emaranhada, é o sentido da vida. Este combate permanente de peixe em águas salobras é o limpa-para-brisas da consciência, é a barreira entre mim e o mundo que se oferece para ser perfurada e se aproximar estruturalmente de uma malha tecida que deixa passar uns peixes e não outros e ao mesmo tempo se mantém viva, ainda que em metamorfose, porque só assim pode ser rede sem o parecer e enganar o enganador. Qual o peixe que mais se realiza enquanto peixe? Aquele que é apanhado pelas malhas da rede ou o que, incauto, toma o anzol por alimento? Como responder a estas perguntas sem deixar de ser pescador? Peixe uma vez, peixe para sempre. Com certeza será bem melhor ser peixe no mar bem alto, lá longe das redes e dos anzóis, onde o sol se põe, no horizonte do fim do mundo onde não há terra, só mar e mar. Lá a vida sorri porque o sorriso da vida é o sorrir dos outros peixes que nadam nas mesmas águas, sendo que alguns, não se contentando só em nadar, também querem voar e se fazem voadores, por isso podem ser comidos pelas aves piscívoras. E aí, santo deus, como se a natureza das coisas não estivesse bem, desenvolve-se a nação dos peixes como se homens fossem. Então talvez valha mais ser apenas um simples pescador do que peixe que não se contenta em ser um vivente das águas.