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quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Natal de Adofreire

O céu estrelado.
O musgo frio, as ovelhas
e os pastores velando por elas.
A mãe de Jesus,
o pai adotivo do menino,
o burrinho e a vaquinha.
Os reis magos ao longe,
guiados por uma estrela
sobre a gruta humilde e fria.
Na noite meio-luminosa,
um lago brilhante
de folha de alumínio.
O menino quase nu
na manjedoira bafejada.
Na rua, junto à capela,
a fogueira enorme,
brilhante de espadas de chamas
desafiando os céus.
E no dia seguinte de manhãzinha,
os sapatinhos com as prendinhas
no silêncio frio da chaminé.
Um paizinho natal de chocolate,
uma escovinha de dentes,
umas meias para o inverno.
A memória do quentinho da lareira
e o frio lá fora e as brincadeiras
das crianças, os risos, as férias,
a descontração de ser feliz
quase sem dar por isso.

Eram assim os natais
quando todos os nossos entes queridos
estavam vivos e quase ninguém chorava
porque o futuro parecia infinito.




quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Descartes - dúvida e verdade


Descartes afirma que foi persuadido pela Razão a rejeitar todas as coisas em que se lhe depare qualquer razão de dúvida, tanto “às abertamente falsas” como àquelas “que não são completamente certas e indubitáveis”. Mostra-nos que não tem que analisar ou percorrer cada “uma em particular”, já que seria uma tarefa ou trabalho sem fim. De facto, quando os “fundamentos” de um edifício estiverem minados, todo o edifício ficará em risco de ruir. Por isso Descartes afirma que atacará imediatamente todos os princípios em que se apoiava tudo aquilo em que acreditava. É esse o início do processo da dúvida cuja natureza é metódica, provisória, radical e hiperbólica. O alcance da dúvida atinge todas as crenças e fundamentos. Descartes coloca tudo em dúvida, inclusivamente a sua própria existência enquanto corpo e alma. Mas de que serve duvidar assim, de uma forma tão radical? Qual a utilidade da dúvida? A dúvida é necessária porque é uma tomada de consciência dos erros e ilusões que tolhem o acesso à verdade e impedem o sujeito de atingir o conhecimento verdadeiro. É radical porque não pode deixar nada de fora, nem mesmo as ideias de natureza metafísica, que se encontram na base da “árvore da sabedoria”. Por conseguinte, a utilidade da dúvida manifesta-se na medida em que ela permite encontrar aquilo que resiste a toda a prova de desconfiança: o cogito, fundamento primeiro, crença fundacional sobre a qual se pode erigir todo o edifício do conhecimento. Pela dúvida Descartes encontra uma certeza inabalável pela qual vem a saber que as ciências podem, guiadas pela Razão, conhecer verdadeiramente o mundo, criado e mantido por Deus que garante a verdade.

Descartes - Deus e o Cogito


O cogito é uma certeza subjetiva expressa na fórmula “penso, logo existo”. No cogito ou substância pensante encontra-se a ideia de Deus que é inata. Tal ideia contém os atributos de Deus: é um ser perfeito, omnisciente, omnipotente, e sumamente bom. A certeza deriva do caráter inato e a priori das ideias contidas no cogito que são uma espécie de sementes da ciência colocadas em nós por um Deus verdadeiro, descobertas por intuição. Deus é, assim, a garantia do mundo e da verdade acerca desse mundo, por intermédio do cogito. A verdade dos enunciados científicos só é possível, para Descartes, devido à relação recíproca existente entre o cogito e Deus. Deus criou o mundo e garante a sua subsistência, ao mesmo tempo colocou no homem a ideia de si próprio, ser perfeito, e todas as outras ideias inatas, como as matemáticas, pelas quais se pode produzir ciência que não é mais que o estudo do mundo decantado pelo pensamento racional.

Dogmatismo e Racionalismo


O dogmatismo é uma posição acerca do conhecimento que afirma que ele é possível e real. Por isso se diz que os dogmáticos, em princípio, não colocam o problema do conhecimento, não fazem a pergunta “O que é o conhecimento?” e muito menos uma outra “Será possível o conhecimento?” Contudo, ao fazermos estas perguntas teremos necessariamente de responder-lhes. O dogmatismo afirma que o conhecimento é possível, mas não explica como é que ele acontece. Para explicar o conhecimento, não apenas como possibilidade, mas como realidade, há que ir mais longe e buscar as origens do mesmo. Desta feita, há duas teorias opostas que tematizam o problema: o empirismo e o racionalismo. O primeiro afirma fundamentalmente que a origem do conhecimento são as impressões e que elas estabelecem o limite do nosso entendimento. Daí que o empirismo em geral desemboque numa forma de ceticismo, ainda que moderado, não negando a possibilidade de conhecimento verdadeiro. Já o racionalismo afirma claramente que a razão é a origem e o fundamento de todo o conhecimento. Para os racionalistas, na medida em que as ideias fundamentais são a priori (inatas), descobrem-se pela intuição intelectual, o conhecimento constrói-se de forma dedutiva num esquema em que o sujeito se impõe ao objeto, há uma correspondência entre o pensamento e a realidade. Assim pode dizer-se que o racionalismo é também uma forma de dogmatismo porque confia absolutamente na razão para atingir a certeza e a verdade. Contudo dogmatismo e racionalismo são diferentes: para um racionalista, como Descartes, o dogma é o fim e não o princípio, já para o dogmático ingénuo, o dogma é o princípio e o fim do conhecimento.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

avenida da liberdade

Nesta avenida 
por onde caminho,
a meu lado seguem, 
as tuas mãos 
assertivas,
os teus olhos doces 
e os teus lábios 
de voz madura.
Aqui sinto, 
mesmo sem te ver,
a paz dos pensamentos
que se desenha 
nas nossas caminhadas
que só morrerão
quando nada formos.

domingo, 6 de outubro de 2019

manifestação

Nesta avenida pura, 
de plátanos e pássaros,
passeia lúcida a vontade
de amores-perfeitos,
rosas e cravos vermelhos.
Solidários numa revolução,
os bombos dos corações
em ordem unida,
como bandos de gaivotas
ondulando, subindo e descendo,
caindo e subindo no vento,
indo e vindo no tempo
apaixonado pela liberdade.

terça-feira, 30 de julho de 2019

pesadelo


Assombra-nos a guerra, 
cume de toda a imoralidade.
Violentos  e artificiais vulcões,
carregados de infâmia, rasgando
montanhas ululantes de pássaros feridos
despedaçam-nos o coração.
A grande mão invisível
obriga o sangue a galgar das veias,
varre toda a beleza, 
exclui todos os sorrisos,
arrasa todo o sentido da vida e a morte.
Neste jogo, incrédulos, 
caem-nos em cima perguntas sem resposta.
A consciência mergulha
num mar pérfido e tenebroso sem fim,
exala, como medusa implacável,
um cheiro entranhado 
de apocalíptico desânimo.

Não valeria muito mais, senhores generais,
assumirmos o mistério que nos elegeu
e deixar-nos embalar solenemente
pela elegante harmonia das esferas celestes?




sexta-feira, 15 de março de 2019

fevereiro

Fevereiro, 
pequeno,
verdadeiro, 
como quem diz 
e vive a vida.
Não se mede aos dias,
como os homens 
não se medem aos palmos.
A grandeza das suas horas
torna impossível 
a nossa solidão.
Planeta anão,
mas de deusas rodeado.
Água de fevereiro 
mata o onzeneiro.
Pois que caia, 
que tanta falta faz,
que o mate, 
para que o mundo 
não seja imundo. 





sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

2022


Como uma gaivota solitária
condenada a ser livre,
numa praia de fina areia,
marcando efémeras pegadas
perante o poderoso oceano,
assim me parece o ano novo.

Assim, respiro, 
por antecipação, 
o ar da primavera 
enquanto a esperança 
desfralda a bandeira
do amor e da paz.

Está aí um novo tempo,
pois que seja excelente
para que valha a pena.