Páginas

quinta-feira, 12 de abril de 2012

sentido


A norma é uma necessidade individual e social. Ela deriva dum princípio de ordem que existe em cada ser humano. A norma deriva diretamente da subjetividade tal como previra Protágoras, o célebre sofista da antiguidade clássica: o homem é a medida de todas as coisas. Essa medida é a bitola que dá sentido a tudo. Há uma premência constante para o encontro dum fio condutor que permite descobrir o sentido da vida. Esta é a descoberta de sentido que até pode ser encontrado no próprio absurdo, tal como o fizeram Sartre (1905 - 1980) e Camus (1913 -1960), ilustres representantes do chamado existencialismo ateu. Para eles a vida não tem sentido, há uma desarmonia fundamental entre: a eternidade e a finitude, a justiça e o sofrimento gratuito, o essencial da vida e a inutilidade dos esforços. A náusea de existir, como Sartre lhe chamou, não tem justificação racional, por isso a vida entronca no absurdo cuja consequência é o niilismo como negação do sentido. Para Camus viver é fazer viver o absurdo, por conseguinte, até se pode viver melhor porque não há que procurar nenhum sentido. A vida seria como que a reatualização sistemática do mito de Sísifo, aquele herói trágico da mitologia grega condenado pelos deuses a empurrar continuamente um rochedo até ao cimo de uma montanha de onde a pedra não deixava de cair devido ao seu peso. O sentido estaria na luta incessante para atingir os píncaros, isso seria suficiente para encher o coração do homem. Teríamos assim de imaginar Sísifo feliz.

 O sentido também poderá ser encontrado através do sagrado, pela vivência dos rituais religiosos que são apenas uma preparação para um novo começo, o da vida eterna, ao encontro de um deus. Ou também nos tão falados valores humanistas e ecológicos que se baseiam na dignidade humana como valor supremo e na natureza, casa comum que partilhamos com todos os outros seres vivos. A negação de sentido, como descoberta da náusea, ou a afirmação de sentido através de outras vias, são o fundamento processual da necessidade filosófica, e não apenas psicológica, de uma ordem, de uma medida, de um terreno avesso ao caos: o cosmos.

É corrente ouvir-se, em discussões quase diárias sobre a moralidade ou imoralidade dos atos dos outros: achas isto normal? É interessante ver que não é uma afirmação mas antes uma pergunta. Não adianta repetir vezes sem conta tal pergunta, é necessário um caminho de resposta, é preciso ir aos píncaros de que Camus nos falava. 

Normal e anormal são duas faces da mesma moeda, cara e coroa, a linha que os separa é também a linha que os une. Por isso, sem cair em relativismos perigosos, é imperioso que cada um construa com arte o seu próprio espelho e se descubra a si próprio na relação pregnante com o outro e talvez descubra que o par normal/anormal, tal como outros semelhantes, já não ajuda nada a compreender a realidade complexa porque carece de fundamento ontológico.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

VERDADE/MENTIRA


 gente a apagar parte do seu currículo, como licenciaturas, mestrados e doutoramentos, para ter acesso a um emprego/trabalho que lhe garanta a sobrevivência. No século XXI, mesmo com o avanço científico, político, moral e filosófico,  às vezes ainda é necessário mentir para se ter acesso à possibilidade de trabalho para sobreviver. A sociedade ainda teme o conhecimento, os empregadores temem que os seus subordinados saibam demais, os empregados temem que os patrões conheçam a dimensão das suas competências e dos seus conhecimentos e capacidades. 

Porquê esta desconfiança e aversão ao saber?

 O filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) afirmou, há mais de dois mil e trezentos anos, na obra Metafísica, que todos os homens têm por natureza, o desejo de conhecer, uma prova disso é o prazer das sensações que nos permitem esse conhecimento. 
Antes dele, Platão (428 a.C. - 348 a.C.) havia dito que o maior dos males é a ignorância.  A instituição escola, que existe um pouco por todo o mundo, e com a qual  concordamos, também vai ao encontro da defesa do conhecimento e da partilha de experiências e de saberes.
A aversão ao conhecimento é contranatura, conhecer e avaliar são duas faces da mesma moeda impreteríveis à sobrevivência do indivíduo e da espécie. 

Então porquê a mentira? 
Porque mentem alguns dirigentes políticos, porque se fazem falsas promessas?

Mentir é uma competência que se baseia na simulação, no faz de conta que é mas não é, que se aprende muito cedo, na aquisição da função simbólica pelas crianças. A mentira pode ser imoral, moral e amoral. É imoral quando se mente com má-fé; moral, quando as suas consequências são úteis para os utilitaristas, embora explicitamente nenhuma moral apele à mentira; e amoral quando não há nenhuma correspondência nem ligação  entre a mentira e os valores morais.
  A verdade e a mentira podem ter um sentido extramoral como também afirmou o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) num texto de 1873:

"O intelecto, enquanto meio de conservação do indivíduo, desenvolve o essencial das suas forças na dissimulação, pois esta é o meio de conservação dos indivíduos mais fracos e menos robustos, na medida em que lhe é impossível enfrentar uma luta pela existência munidos de chifres ou das poderosas mandíbulas dos animais carnívoros. É no homem que esta arte da dissimulação atinge o seu ponto culminante: a ilusão, a lisonja, a mentira e o engano, a calúnia, a ostentação, o facto de desviar a vida por um brilho emprestado e de usar máscaras, o véu da convenção, o facto de brincar de comediante diante dos outros e de si mesmo, em suma, o gracejo perpétuo que em todo o lugar goza unicamente com o amor da vaidade, são nele a tal ponto a regra e a lei, que quase nada é mais inconcebível do que o aparecimento, nos homens, de um instinto de verdade honesto e puro." (1)

Podemos entender a verdade e a mentira para além da  moralidade, também  porque é a justificação da justiça e tem duas fontes, a tradição e a ética. 
A tradição é um conjunto de respostas existenciais para as quais não foram feitas perguntas, é um processo de transmitir sem questionar profundamente, é a assunção de modelos mentais e comportamentais sem crítica, sem fundamentação, em muitas sociedades, o casamento, por exemplo, é uma tradição.
A ética é o pensamento que fundamenta e legitima a moral que cada um assume no seu lugar, no seu contexto, é a reflexão sobre o porquê e o para quê do agir humano. É a consciência na ação que preserva a diferença, o respeito e a igualdade de todas as pessoas.

Mas, antes de mais, há o instinto de sobrevivência individual e familiar, anterior a qualquer moral e a qualquer ética. A ética pode justificar a mentira na medida em que esta não é um fim em si mesma, mas um meio para atingir fins exteriores à própria mentira, ou seja, mentir para um mal menor ou para um bem maior. Por isso os médicos por vezes mentem aos doentes, por exemplo com os placebos, os empregados aos empregadores, os dirigentes políticos uns aos outros e aos governados, os amantes aos amados.

As nações deviam ser todas Estados de Direito com leis fundamentais legitimadas pela verdade, pela ética e pela moral,  mas, mesmo quando o são, elas nem sempre são respeitadas, até por quem as faz. 
Não cumprir e não fazer cumprir uma lei que se fez é incorrer numa contradição racionalmente insustentável, é um atentado à ética e à moral pela implementação da mentira existencial.
Esta contradição  leva à angústia do cidadão que, quando consciente da sua situação, consegue sair da resignação para um etapa nova da vida social e política e tornar-se parte ativa num processo de mudança a que se chama revolução, necessariamente verdadeiro, porque só com a verdade se superam as contradições que geram injustiças e se alcança um estado de igualdade e de liberdade.

Nota (1): Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral, Friedrich Nietzsche, 1873, adaptado.