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sábado, 15 de outubro de 2011

o vagabundo filósofo

O Vagabundo filósofo

O vagabundo perdeu-se em pensamentos. O importante é o futuro, diz-se. Há alguns grupos humanos, principalmente em África, para os quais não faz sentido pensar no futuro. Para eles o passado está à nossa frente, o futuro atrás de nós, o presente é o mais importante, o que somos de verdade. Quando um turista pergunta a um desses africanos quando partirá o barco que ainda não chegou, a resposta que recebe é qualquer coisa como isto, se o barco ainda não veio como é que se pode saber quando é que ele vai partir. A pergunta é, para esse africano, perfeitamente absurda. Só podemos conhecer o passado pela memória, pelos vestígios arqueológicos, pelo pensamento sobre o que se observa no presente. A vida é um eterno presente, não poderá ser de outro modo. O futuro não existe, é um nada absoluto, não pode ser conhecido porque não tem fundamento ontológico.

Que desperdício enorme gastar tempo com o que não existe, pensarão justamente esses africanos. São muito mais inteligentes do que aqueles que propalam a civilização com base na criação do futuro. Bem vistas as coisas o futuro é a maior ilusão jamais criada pelas pessoas, o disparate dos disparates. Talvez por isso se compreendam os grandes desastres e tragédias da história dos seres humanos. Acontecem sempre em nome de um passado mítico e de um futuro radioso, de um projecto político, de uma utopia. Poderíamos investigar noutro âmbito o problema ou a questão do tempo, por exemplo, em Santo Agostinho, nos livros X e XI das Confissões. O passado é o que foi, já não existe, o presente também não existe, apenas é uma ligação entre o passado e o futuro. O futuro não existe porque ainda não aconteceu. Poderíamos aventar no limite que o tempo não existe. Não tem de facto fundamento ontológico, a não ser na sua qualidade de elemento espiritual que entra numa relação físico-matemática. Tempo, relação entre o espaço e aquilo que nele se move. Porque havemos de nos preocupar com aquilo que não existe? O futuro não existe. Se considerarmos que existe tudo quanto possamos imaginar, existe também o futuro. Na imaginação apenas. Como potencial projecto. Poderíamos afirmar que o futuro integra esse imenso manancial que é o não-ser. Portanto sou levado a concluir que não nos devemos ocupar do não-ser, não temos por onde. Seria um esforço em vão, uma tarefa inútil. Olhemos para o passado. Se alguma coisa tem interesse é aquela que é possível.

Nisto adormeceu. Sonhou. Sondou as estrelas próximas e distantes, a via Láctea, as miríades de galáxias. Viajou pelo seu passado. Sentiu-se leve como uma asa de pinhão bravo desprendida pela gravidade, rodopiou mil vezes, impulsionada pelo sopro invisível da ventania oriunda das cercanias. Sonhou, caiu, ficou sem ar, levantou-se, perscrutou o horizonte. Para além daquela serra o que haverá mais? Até agora o seu fim-do-mundo coincidia com aquela linha ziguezagueante, dentada, como se fosse metade da boca que come o universo à medida que ele se aproxima. O mundo, o que será? Seria necessário viajar, correr, galgar rios, estradas, montanhas, desertos, tratar, ver e pelejar. Amanheceu lentamente, as forças cósmicas encontravam-se adormecidas sob o manto fervilhante da crosta terrestre, húmida, quente, cor de musgo, como aquele que se usa na cobertura dos presépios. Vagabundo, quase eremita, a sua única preocupação e o seu sentido para a vida reduziam-se à tentativa errante de vasculhar o passado para responder à pergunta, quem sou eu?

O futuro jamais o preocupou, nunca perdeu um minuto da sua existência com o que considera uma leviandade, dar um rumo à sua vida, prever os caminhos que há-de trilhar, projectar-se. Aliás, a fisionomia que aparentava de certo não lho permitiria. Nariz adunco, barba farta, sobrancelhas cerradas, face avermelhada, um sem número de vasos capilares em mau estado. Quase sem pescoço, atarracado, pernas curtas, empenadas, como se nunca tivesse andado a não ser de burro, cavalo ou camelo. Enfim, vagabundo filósofo, do passado apenas. Para ele, mente quem diz, quero o meu futuro. A sua primeira grande viagem não foi além de percorrer um sem número de poetas e filósofos, escritores e dramaturgos, foi, pois, uma odisseia intelectual. Dos pré-socráticos, Platão e Aristóteles a Kant e Hegel, de Demócrito a Hume e Marx de Camus a Sartre. Havia nessa viagem ideias interessantes e muito simples em relação à qual deixou de ter qualquer tipo de dúvida. Sobre o universo: não teve origem nem vai ter fim, sempre existiu e sempre existirá, é infinito e não tem centro. Não há qualquer necessidade de um deus, tudo é uno e ao mesmo tempo múltiplo. Se alguém discordar que prove que não é assim. Não há espírito, não há alma, só corpos com energia própria e partilhada que funcionam de acordo com leis que vão nascendo, que se vão alterando, morrendo, descobrindo e esquecendo, paulatinamente. As metafísicas não são ideias sem materialidade ou energia correspondente, originante ou consequente.

Havia, no meio de todos aqueles engenhosos cientistas e pensadores um que em particular achava muitíssimo interessante, Ivan Pavlov que havia recebido o Prémio Nobel da medicina em mil novecentos e quatro, cuja ideia principal não era mais do que esta: o pensamento é o cérebro em acção. Os seres humanos são apenas cãezinhos de Pavlov, gatos de Thorndike e ratinhos de Skinner, nascem, crescem, vivem e morrem e co-pertencem a essa espantosa unidade e diversidade que é o universo. Castigam e são castigados, reforçam e são reforçados, alimentam e são alimentados, reproduzem-se em reverência ao gene egoísta ou altruísta, negociam e são negociados. Perceber tudo isto é regressar ao passado, é ver o que pode ser visto.

 Já um amigo de Péricles, esse famoso político Ateniense da antiguidade clássica, Anaxágoras de Clazómenas, defendia justamente, que o espírito é corpóreo, e que em todas as coisas há uma porção de todas as coisas, aliás, como é que o cabelo podia vir do que não é cabelo, ou a carne do que não é carne? Tudo está em tudo. Se o presente é a necessária derivação do passado, então todo o presente e até todo o futuro estão necessariamente no passado. Qual a diferença entre masculino e feminino para além daquela que é evidente, a saber, o primeiro é convexo, o segundo é côncavo. As respostas estão no passado, sejam elas mais ou menos verossímeis, como no Banquete de Platão: os seres humanos dividiam-se em três géneros e não apenas em dois, macho e fêmea, o terceiro era o andrógino e reunia as características do masculino e do feminino. Era ao mesmo tempo côncavo e convexo, com uma forma inteira e globular. Tinha quatro mãos, quatro pernas, duas faces iguaizinhas uma à outra, quatro orelhas, dois órgãos genitais. Deslocava-se rapidamente e em círculo. Os andróginos eram seres especialmente dotados, de grande resistência e muita ambição, por isso começaram a conspirar contra os deuses. Estes, comandados por Zeus, decidiram enfraquecer os seres humanos andróginos: dividiram-nos ao meio um por um, tal como cortavam sorvas para as pôr em conserva, reviraram-lhes as peles e ajustaram-lhes as carnes, sararam-lhes as feridas, alisaram-lhes as rugas, deixando-lhes uma marca que é hoje conhecida por umbigo. Foi também o próprio Zeus que lhes mudou os órgãos genitais detrás para a frente porque eles desfaleciam e morriam, já que não se podiam entregar aos prazeres e à luxúria, porque para isso também são necessários os olhos nos olhos. Assim Zeus determinou que os humanos se reproduzissem mediante os órgãos da fémea por intermédio do macho.

O amor data dessa época em que se repõe o estado original dos seres humanos, fazendo de dois, macho e fêmea, apenas um, curando-se assim a natureza humana e disponibilizando os homens e as mulheres para as tarefas da mudança, da história e da sobrevivência, onde não poderia faltar tempo para a adoração e veneração dos deuses. Menos mal, pior do que adorar os deuses só mesmo adorar e servir outros homens e mulheres como se de deuses se tratasse. Pior do que cumprir regras dos deuses, que são sempre dos homens, só mesmo sofrer a pressão do poder de quem não tem legitimidade para o possuir. Veio-lhe à memória uma conferência a que assistiu na faculdade de letras, proferida por um notável velhote que, no final da mesma desatou aos murros na mesa, para espanto de excelências e de minudências dizendo, Il n`y a pouvoir de gauche ni pouvoir de droite, il y a un seule pouvoir, le pouvoir de merde. É necessária a memória, a memória, a memória. Como também defendeu Kundera, a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.

 O poder envenena, arrasta consigo a miséria moral, a intriga, a desconfiança, a denúncia e lança os seres humanos na violência. Mais uma vez a sua teoria se confirmou, só o passado pode interessar, só o passado existe e faz sentido. Esta ideia jamais deixou de o perseguir, colava-se-lhe em sonhos como uma lapa à rocha, já que não a conseguia afastar, decidiu-se a viver com ela para sempre.
Por isso decidira estudar numa grande cidade de vagabundos que pastam na noite e onde vaguearam poetas e filósofos que também na noite pastaram. Ovelhas e pastores de si próprios, porque ninguém decide nada por ninguém, cada um é senhor de si e do universo que é de todos e de cada um, ou não fosse verdade a máxima de que tudo está em tudo. Até mesmo uma criança de tenra idade que pergunta porquê, quem é que fez o mundo, quem é que me fez a mim e lhe respondem foi deus, ou de outra maneira que não adianta muito mais, a teoria do Big Bang que se dá na escola, ela não deixa de perguntar, então quem é que fez deus, quem é que fez o pontinho de matéria hiperconcentrada de onde tudo saiu com a enorme e estrondosa explosão? Tudo está em tudo, tudo está no pontinho de matéria e energia hiperconcentrada. Esse pontinho que pode ser o resultado dum processo físico relativo a um buraco negro, e este, o resultado daquele, sempre existiu e sempre existirá, o que muda apenas são as aparências. Não podemos, pois, ir muito além da ideia de que “O que é, é, o que não é, não é”. Não vale a pena andar em busca do futuro porque mesmo que assim se faça o que se encontra é o passado. É também aqui que se desenha o absurdo. Que nada faz sentido ou que não tem significado primeiro ou último. Que nada existe ou se existe não pode ser conhecido ou caso possa ser conhecido não há critério ou evidência que garanta a verdade ou a veracidade desse conhecimento.