Páginas

terça-feira, 30 de agosto de 2011

O lugar da filosofia

A filosofia é uma das áreas do saber que mais contribuem para a liberdade e é ao mesmo tempo uma inesgotável fonte de prazer, por isso jamais morrerá. A filosofia apresenta a característica de ser um problema para si própria, o que não acontece tanto com as ciências, que são particulares.
Cada ciência tem por objecto uma parcela mínima do real e por isso não possui em si própria a intuição da totalidade. O objecto de cada uma das ciências é abstracto, retirado da globalidade a que chamamos real. Cada ciência tomada em si mesma é, pois, abstracta. Consequentemente o cientista, o técnico, e também o cidadão comum, poderão viver alienados, separados de uma compreensão do mundo.Tal entendimento do horizonte de possibilidades só existe numa área do saber: a filosofia. Ela dá acesso à intuição do real na sua totalidade, não é alienante. O seu objecto concentra-se no ser humano, A filosofia permite procurar desvendar os mistérios do nosso pouco conhecimento e da nossa profunda ignorância porque se espanta com o mundo e por isso o interroga.

Os artifícios da ciência e da técnica entrelaçam cada vez mais a vida humana, são uma espécie de caixas negras de que o cidadão comum desconhece a estrutura. Assim, o homem vive na (in)segurança, cada vez mais rodeado pelo desconhecido, aparentemente familiar. Não intuímos rapidamente os fenómenos electro-mecânicos ocorridos quando pressionamos o botão que porá em funcionamento um sistema moderno de rega automática controlado por computador, mas os nossos bisavós, tal como nós, compreendem muito bem o como da rega pela nora ou pela picota. Para além da nossa ignorância, acresce ainda o facto de o espaço individual e comunitário ser cada vez mais reduzido. Sobrevivemos em enormes caixotes de betão armado, oitenta por cento da população no início do século XXI, circulamos como sardinha enlatada, dispomos em geral pouco espaço próprio, privado, íntimo, natural e também de pouquíssimo tempo. Este modo de sobrevivência pauta-se pela desconfiança do desconhecido. Somos potenciais consumidores-criminosos, vigiados a toda a hora por agentes de segurança, espelhos e câmaras de vídeo, no mundo do big brothter. O outrora cidadão à maneira de Sócrates ou de Rousseau é hoje o consumidor potencialmente criminoso. Isto aconteceu devido ao abissal desfasamento entre os desenvolvimentos técnico e cultural. Seria necessário cultura técnica e cultura científica, ou seja o cultivo das artes -  literatura, música, arquitectura, escultura, pintura, teatro, dança, cinema, desporto - para que o  verdadeiro cidadão fosse sempre uma realidade. A compreensão global das técnicas apenas por alguns gera a grande insegurança do homem da cidade. A técnica alienante resulta da instrumentalização da linguagem e desemboca na era atómica tal como ela existe: a espécie humana encontra-se em risco de auto-destruição.
Mas a técnica oferece-nos também conforto, segurança, versatilidade e alguma satisfação sensorial e e intelectual. Com a técnica o homem da cidade passou a ser um técnico, um especialista, sempre na mira da ínfima parte do objecto que lhe cabe. Mas o problema não está na técnica enquanto actividade criadora do homem, mas enquanto refúgio e isolamento ou alienação.
Os seres humanos são por natureza insatisfeitos, constatamo-lo sempre.  Contudo, o perigo para a essência humana surge quando se atinge um estado de satisfação meramente hedonista pelo consumo incutido, cego, irreflectido, sem criatividade. Este estado só se atinge quando não há compreensão global da realidade. Por isso a filosofia é importante porque nos faz cumprir a promessa dessa compreensão.
O filósofo raramente se satisfaz com o que alcançou, deste modo está sempre em progresso e se isso é uma evidência é porque todos os seres humanos possuem no seu íntimo pelo menos um pedacinho de filosofia.

A filosofia é uma forma de amor pela qual as pessoas se sentem atraídas para a verdade (desocultamento) em diversas dimensões e perspectivas. Sem verdade o mundo não funcionaria, sem filosofia viver-se-ia em permanência na ilusão inconsciente.

Da nossa estrutura corpórea emergem impulsos que nos conduzem a questões:
o que somos?, donde viemos?, o que fazer?, para onde vamos?, farão sentido o amor e a liberdade? A filosofia nasce do espanto cuja função é despertar-nos, vencer a inércia e por-nos a caminho dum consciência cada vez mais manifesta. É esta consciência e respectiva vivência (a consciência é um incessante fluxo de vivências intencionais) aquilo a que verdadeiramente se pode chamar felicidade. Não há felicidade inconsciente.
Os seres humanos agem muitas vezes contra elementos naturais e consequentemente contra si próprios, por isso, parcialmente  alienados, permanecem insatisfeitos. Para responderem a essa insatisfação terão de compreender os problemas que os atingem, terão que efectivar interrogações. É aqui que se encontra o princípio da filosofia, o momento em que surge em nós a primeira pergunta. Porque é que perguntamos? Faz parte da natureza humana perguntar. Por isso todos os seres humanos podem ser filósofos. É nisto que eles se distinguem dos outros animais, parece que eles não fazem perguntas e não tecem argumentos.
Portanto o lugar da filosofia é o próprio Homem: a estrutura corpórea de onde emergem as perguntas e as respostas que lhes são dadas. Este processo é dinâmico e interminável porque as respostas são sementes que germinam. 

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

princípio da minha história da filosofia

Há muitos anos tive uma longa conversa com alguém mais velho do que eu. À lareira, no Inverno rigoroso, com as místicas labaredas a inspirar-nos. O tema dominante era a passagem do mito à razão. Falou-me daqueles homens que viveram há mais de dois mil e quinhentos anos. Eram os filósofos pré-socráticos. Viviam na zona de Itália e em Atenas, na Grécia. Fiquei fascinado com as suas ideias e comecei a sentir que hoje não somos assim tão diferentes, o céu que observamos é o mesmo, azul e povoado de estrelas, o planeta que habitamos é o mesmo e as pessoas são muitíssimo semelhantes: amavam, odiavam, vingavam-se, inventavam histórias, nasciam, cresciam, casavam, reproduziam-se e morriam. Criaram tecnologias muito diferentes das de hoje, mas baseadas, talvez, num mais apurado processo de observação. Alavancas, espelhos, relógios de água, de areia e de sol, sistemas de irrigação, agricultura e pastoreio, caça, pesca. Realidade virtual, física, filosofia natural, música e matemática, astronomia, história e geografia, literatura, desporto e competição. É caso para perguntar, o que é que há hoje de inteiramente novo à face da terra e na vida das pessoas? Quase nada, creio. A democracia política, a ditadura, a tirania, a liberdade, a ética e a moral. A linguagem e a gramática, a lógica. Nessa remota antiguidade está lá tudo. Tive mais tarde um professor de filosofia medieval que asseverava que Platão e Aristóteles, os mais influentes e mais próximos de Sócrates e dos pré-socráticos, são os filósofos e tudo o resto é comentário.