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sábado, 30 de janeiro de 2021

Campo Maior

Campo 

maior que o pensamento,

do tamanho dos sonhos, 

sagrada terra onde mora a tua palavra.

Campo inteiro 

de dias transparentes,

como água  natural

de nascente pura e fresca.

Nele se levantam vozes

por mor das penas dos seus filhos

e de quem percorreu seus trabalhos e seus trilhos.

Já abalaram muitos

para a cidade grande,

dia a dia, sol a sol, noite a noite,

afugentando correntes e  grilhetas

com o suor do rosto

que afoga as mágoas

da pele crestada

pelo vento suão, 

pelo calor, pela dor.


Eis  o verde vivo, 

que me tem cativo,

de amarela flor

girando até o sol se pôr.

Eis ainda a bandeira rubra

que mora  na tua voz

que é a voz de todos nós.

Ufano grito do fundo do  peito,

retumbando liberdade

como em Abril 

de cravos mil.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Paisagem e Cultura

 

A palavra "cultura" refere, tal como afirma Blackburn, o modo de vida de um povo, com as suas atitudes, valores, crenças, artes, ciências, modos de perceção e hábitos de pensamento e de ação. É o conjunto dos modos de pensamento, comportamentos e produções materiais e espirituais transmitidos e aprendidos no decurso do processo de socialização. A cultura fornece os meios de adaptação do ser humano ao seu ambiente e desempenha um papel fundamental na unidade e diversidade da espécie humana. Onde há seres humanos há cultura, ela é o conjunto de todos os traços e produções específicos dos seres humanos de todas as latitudes do planeta Terra. É universal, na medida em que há cultura em qualquer espaço ou paisagem onde se encontrem membros da espécie humana, mas é também diversa, porque há uma infinidade de possibilidades dos seres humanos se organizarem para viverem em sociedade. É a cultura que define a humanidade. Não haveria humanidade sem cultura. Por isso tal como os seres humanos são diversos, também são diversas as culturas e em cada uma delas se pode divisar um conjunto de características comuns a todos os indivíduos que nelas participam e que define aquilo a que chamamos “padrão cultural”, isto é, maneira própria e tipificada de pensar, sentir e agir, específica de uma determinada cultura. A cultura é adquirida após o nascimento e transmite-se de geração em geração por meio da linguagem num processo complexo de socialização primária e secundária.

Poderemos perspetivar a cultura de diversas formas: do etnocentrismo ao relativismo. Não nos parece que a primeira, o etnocentrismo, seja no século XXI uma visão correta, já que aponta para  a ideia de que o povo a que se pertence, com as suas crenças, tradições e valores, é um modelo absoluto a que tudo o mais deve submeter-se. Não devemos defender imposições absolutistas nem sequer imposições de tipo nenhum, não faz parte do nosso léxico vivencial, tanto intencional como prático, qualquer forma de totalitarismo. Por isso, devemos entender a cultura numa perspetiva do relativismo, na medida em que reconhecemos que não há critérios universais e independentes de bem e de mal, de belo e de feio, mas não aceitamos um relativismo absoluto que tolere tudo.  Devemos ser tolerantes e compreensivos porque não podemos nem devemos condenar o que é diferente de nós só porque é diferente. A virtude da tolerância tem de pressupor limites e intolerância face aos intolerantes, torna necessária e impreterível a concretização prática dos direitos humanos universais. A cultura, seja em que contexto ambiental for, deve promover sempre o bem-estar humano em reciprocidade com o respeito pela natureza. Mas a cultura emerge sempre num contexto, em parte determinado pela paisagem herdada seja ela natural ou humanizada. Algumas questões que creio importantes e que se ligam ao espírito desta reflexão são:

- Que relação existe entre paisagem e cultura?

- Como poderemos agir para alterar essa relação, no caso de ela estar a ser incorreta?

Recordo uma das primeiras aulas de geografia quando frequentei o oitavo ano do ensino geral unificado, em finais dos anos setenta do século XX, a qual se iniciou com a definição de Geografia: a ciência que descreve e explica as paisagens naturais e humanizadas. E logo vieram as perguntas dos alunos, como é que sabemos o que é natural e o que é humanizado?

 No contexto europeu e português e mesmo mundial, quase não há paisagens absolutamente naturais no sentido de que não tiveram ainda qualquer intervenção ou influência humana. Os processos de industrialização, de urbanização e de vida dos seres humanos estão submetidos, há muito tempo, à globalização onde, com certeza, é provável o efeito borboleta. Tudo está ligado a tudo, a poluição numa parte do mundo influencia, por pouco que seja, todas as outras partes do mundo.

Podemos referir paisagem e cultura por um conceito de duas palavras: paisagem cultural. A UNESCO, através do Comité do Património Mundial colocou em destaque o conceito de paisagem cultural pelo seu reconhecimento enquanto categoria, mas a sua génese acontecera já no século XIX. A paisagem cultural é a paisagem criada pela cultura humana. De acordo com a visão determinista, a paisagem cultural é construída pelos seres humanos cujo comportamento obedece apenas a fatores de natureza ambiental.  Sabemos que não é assim, por exemplo, Franz Boas (1858-1942), um dos pioneiros da antropologia moderna, desenvolveu a ideia de paisagem cultural com a introdução do conceito de relativismo cultural, partindo do pressuposto de que cada povo/cultura se expressa ou se pode expressar de forma diferente em ambientes semelhantes. Podemos defender a importância da especificidade de cada cultura e de cada lugar para compreendermos as paisagens culturais, em contraste com a ideia de evolucionismo linear e unidirecional do desenvolvimento da humanidade. Daí que os fatores culturais de natureza não material, sejam muito importantes, mas não únicos, na perceção da transformação das paisagens. Para além das diferentes visões e entendimentos do que é a paisagem cultural, percebe-se, cada vez mais, que a paisagem tem uma história que é impreterível reconhecer, tem os seus próprios ritmos e temporalidade. Por isso uma das áreas atuais de pesquisa é a “biografia da paisagem”. 

O debate que importa fazer sobre as paisagens culturais é aquele que tem a ver com a preservação da identidade cultural e paisagística no contexto de mudanças que devem ser pensadas coletivamente no respeito pelos direitos humanos e pela preservação da biodiversidade com uma economia sustentável a longo prazo. Assistimos há alguns anos, por exemplo, em todo o Alentejo, a uma crise da paisagem que sofre devido ao êxodo rural e à perda demográfica, e desemboca numa perda progressiva do saber enraizado na cultura das comunidades que paulatinamente vão desaparecendo. Isto não é uma inevitabilidade, reconhecemos isso, e para tal aqui se faz algum caminho de reflexão que se impõe e que não pode esmorecer. 

O estudo das paisagens culturais deverá ser  feito no sentido de compreender a sua história e  cultura, de apreender a sua identidade e consequentemente melhorar a sua perceção; a leitura e interpretação das paisagens culturais são imprescindíveis para a sua correta gestão e  para uma boa intervenção, se necessária, tanto no presente como no futuro; as decisões que decorrerem do estudo, reflexão, análise e debate sobre as paisagens e a cultura deverão garantir a sobrevivência condigna das comunidades locais dos pontos de vista social, económico, cultural, ambiental e ecológico. Por conseguinte, nesta senda, vislumbra-se a necessidade humana de identidade cultural intrinsecamente ligada, não apenas a um sentimento de pertença a determinado grupo étnico, cultural, religioso, mas também à sua ligação profunda à terra, à paisagem. Veja-se, por exemplo, o cante alentejano como Hino e  Alma do Baixo Alentejo, como é mostrado pelo  mestre José Gato, a partir do cancioneiro de Serpa:

Alentejo, Alentejo

Eu sou devedor à terra, a terra me está devendo!

Eu sou devedor à terra, a terra me está devendo!

A terra paga-me em vida, eu pago à terr'(em) morrendo!

 A terra paga-me em vida, eu pago à terr'(em) morrendo!

 Alentejo, Alentejo! terra sagrada do pãão!

 Eu hei-de ir ao Alentejo, mesmo que seja no Verão.

 Ver o doirado do trigo na imensa solidão.

 Alentejo, Alentejo! terra sagrada do pãão!

 

https://www.youtube.com/watch?v=xxDz28Fhp-0

 

Devemos defender a preservação do património cultural pela recolha e manutenção de memórias vivas e dinâmicas, como o cante, por exemplo, porque pode potenciar formas interessantes e profícuas de desenvolvimento social, cultural e económico como o turismo cultural, na medida em que for compatível com a qualidade de vida dos locais e de quem os visita. Mas é igualmente necessário defender e preservar o património material edificado e classificado em todas as paisagens, sejam urbanas ou rurais. É desolador ver, como aconteceu recentemente, nos arredores de Évora, uma anta do período neolítico arrasada para plantação de um amendoal intensivo, património à mercê de interesses privados e do desleixo das entidades públicas. Inaceitável é também a invasão do olival intensivo junto às populações, pondo em causa a qualidade do ar que se respira, da água que se bebe,  do silêncio que se necessita e do horizonte visual tradicional tranquilo. Igualmente preocupante e inaceitável é a alteração da paisagem do montado alentejano, agora atacado e invadido por culturas intensivas, criando ilhas de sobreiros e azinheiras que, cercados, têm a morte anunciada, impossibilitando outras formas de economia tradicional sustentável, como a criação do porco alentejano à base de bolota.

Os exemplos aqui apontados mostram que há paisagens tradicionais, como o olival de sequeiro, e expressões culturais positivas que lhes estão associadas, ambas em risco, e que é possível alterar este estado de coisas. O olival tradicional, ao contrário do intensivo e super intensivo, preserva os aquíferos, não polui os solos nem o ar, não agride esteticamente, é um investimento de longo prazo, cria expetativas positivas  intergeracionais, desenvolve-se num tempo lento com um alto grau de previsibilidade, cria produtos de melhor qualidade, dá confiança às populações locais, permite, não o imobilismo, mas uma evolução paulatina que respeita os ecossistemas e as tradições populares pelas quais se mantêm dinâmicas culturais e  de comunicação que potenciam outras formas de desenvolvimento como o turismo cultural saudável, e um modo de viver mais feliz. Combater o olival e outras culturas intensivas e superintensivas é contribuir para uma vida melhor em Portugal e também para um planeta onde a vida humana e de outras espécies a curto, médio e longo prazo, seja possível. Significa colocar em simbiose, e não em oposição, as paisagens e as expressões culturais, gerando equilíbrios, numa dialética que visa uma sociedade mais igualitária, respeitando as diferenças, e por isso mais desenvolvida humanamente, uma sociedade livre da exploração do homem pelo homem e do interesse exclusivo daqueles que apenas almejam o lucro máximo no menor tempo possível.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Religião

O significado da palavra religião, no singular, é uma abstração. Não existe a Religião. O que há de facto são muitos milhões de pessoas que acreditam num deus ou numa divindade ou divindades. O que há é uma multiplicidade de religiões: hinduísmo, budismo, confucionismo, tauismo, xintoísmo, judaísmo, islamismo, cristianismo, religiões africanas, orientais, etc. Cada uma destas áreas religiosas, por sua vez, se segmenta em outras, por isso constatamos muitos cristianismos, islamismos, judaísmos. Por isso também sabemos que é impossível uma única religião universal, embora haja quem o afirme. Os estudos antropológicos e sociológicos apontam para a confirmação da probabilidade de a maior parte dos habitantes do nosso planeta serem crentes e se identificarem com alguma religião.
O que distingue fundamentalmente o real religioso do não religioso é a demarcação do sagrado e do profano. Esta inscrição merece ser estudada e por isso podemos afirmar a teologia como uma parte da antropologia, uma ciência que estuda, não o deus ou as divindades, mas, empiricamente, as vivências religiosas, tais como os rituais próprios de cada uma das religiões.
Em relação às religiões e respetivas divindades podemos posicionar-nos como, ou ateus, ou crentes ou agnósticos ou ainda, indiferentes. Todas estas posições são respeitáveis, elas versam sobre entidades que, na sua essência, não são dadas aos sentidos. Não conhecemos a figura de deus, não o vemos, não o sentimos nem o ouvimos, cientificamente falando. Mas não são necessárias tais constatações para haver crenças religiosas, basta escutarmos alguém a dizer com veemência, "eu acredito", para não ser possível negar a vivência e a evidência da religião. A religião merece o maior respeito, apesar de, historicamente, encontrarmos episódios sem conta das maiores atrocidades cometidas em nome de algumas religiões, tais como autos de fé, torturas inquisitoriais, atentados suicidas, mutilações, penitências, castigos infernais, etc.
Contudo podemos perguntar, é possível viver bem, individual e coletivamente sem religião? A resposta é afirmativa, a religião não é uma condição "sine qua non", universal, para o bem, para a justiça, para o amor, para a esperança ou para a paz. Embora haja quem afirme o contrário. Também há milhões de pessoas que não acreditam em nenhum deus e, em algumas sociedades, nomeadamente as mais desenvolvidas económica e socialmente, onde se verificam menos assimetrias, regista-se um progressivo aumento do número de não crentes. Nestas situações, as religiões têm alternativas que são as filosofias de vida não religiosas, tais como os humanismos materialistas, marxistas, existencialistas, ecologistas. Todas estas formas de pensamento e de vida permitem responder a perguntas, que de um modo ou de outro, cada um de nós faz ao longo da sua vida, tais como:
Qual a razão de ser e a finalidade da vida?
De onde vimos e para onde vamos?
Será que a vida vale a pena ser vivida?
Porquê a morte e o sofrimento?
As religiões têm respostas, muitas vezes simples, fáceis de compreender e de intuir, para estas questões, por isso compreende-se a facilidade com que proliferam certas religiões, ou outras formas de vivência do fenómeno religioso, como seitas, movimentos alternativos e tendências ocultistas. Independentemente da posição que cada um de nós assumir, creio que o essencial é que as pessoas se respeitem na sua diversidade, combatendo o preconceito racial, étnico, nacional, social, de género, sexual, político, cultural, estético. Acredito que é possível um diálogo ecuménico, de convivência e inter-religioso para uma igualdade e harmonia entre todas as religiões, que poderão promover a paz local, regional e mundial. Tal possibilidade só se efetivará se a política e a religião se mantiverem com a distância necessária para não se instrumentalizarem mutuamente, tal como prevê o desiderato das sociedades laicas que respeitam as religiões, na medida em que servem a ética universal.
Por vezes sinto que é na aparente insignificância da vida que encontro a minha vivência religiosa do mundo, por paradoxal que pareça, por uma ligação aos outros, sem ídolos, sem heróis e sem deuses. A palavra religião, cuja etimologia, mesmo que parcial, aponta para "religare", ligação, ajuda-nos a compreender que, quer queiramos quer não, estamos todos ligados uns aos outros, somos semelhantes na nossa pertença ao mundo e ao mesmo tempo ignorantes perante o mistério da vida e da infinitude do universo. Caminhamos todos pela mesma estrada, que tanto se sobe como se desce, e por ela tanto podemos encontrar o céu como o inferno, dependendo da maneira como viajamos. Talvez a melhor maneira de viajar seja a de mãos dadas, é essa, para mim, uma das facetas mais positivas e interessantes das religiões, nomeadamente das religiões cristãs, dominantes no nosso Portugal.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Ano Novo


O ano novo está aí à porta e, 

como sempre, não faltam profetas, 

adivinhos, futuristas, especialistas 

e outros coristas dos paraísos

e dos apocalipses, com máscara ou sem ela,

para nos apontarem o caminho da salvação!

Parece simples encontrar o portal

da felicidade, a janela para o horizonte

onde não há pecado nem sofrimento!

O ano que termina não se eclipsa, 

gravado será na memória universal, 

é tempo, não tem ânsias.

Os anseios são dos corpos 

sôfregos pela realização dos sonhos, 

que num ápice se desvanecem.

E nós, iludidos pelas memórias,

exclamamos, como que desadormecidos, 

já lá vai tanto  tempo!

Onde vive a criança que se perdeu no caminho?

Onde param as lágrimas das despedidas?

Onde mora a epopeia do amor?

Contaremos as doze passas,  

ergueremos as taças de espumante.

Brindaremos de cara lavada e de alma fresca,

contaremos os bons segredos uns aos outros,

aguçaremos o nosso pensamento?

Por que não respeitar  a palavra limpa e polida,

a dança da vida e a paixão do outro?

Talvez pudéssemos  desviar

os maus  augúrios e inventar

um Novo Ano a sério.