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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

ficção

Tudo no mundo é ficção, sustento ou fundamento dela. Nada existe para além disto. Palavra, pensamento, imagem, sonho, perceção. Quando fecho os olhos nenhuma imagem mais existe para além de tudo o que apanhei na minha rede. Sou sem querer, um pescador incansável, pesco incessantemente e tal como qualquer pescador, passo a maior parte do meu tempo a remendar as redes. Posso parecer idealista, mas a realidade só o é a partir do momento em que há sentido, sonho ou pensamento. A música que oiço é uma ressonância de todas as músicas que já escutei e por isso me leva a um estado de emergência existencial. O que é válido para a música é válido para os seres vivos, animais ou vegetais, para as pessoas em todas as suas idiossincrasias, para todos os livros que li ou debiquei, para todas as paisagens, temperaturas e sensações que já experimentei. Toda a imensa realidade que me rodeia e me atravessa, na maior parte do tempo sem eu dar por isso, me impele para o sonho e para a vigília, sempre aí remendando a rede, que com o tempo se vai rasgando, consoante os peixes que por lá passam e as águas mais doces ou mais salgadas, mais calmas ou mais revoltas, mais puras ou impuras que a atravessam. A inexorável intromissão de outros pescadores com outras redes no meu ser de pescador e no meu ser de rede, muitas vezes emaranhada, é o sentido da vida. Este combate permanente de peixe em águas salobras é o limpa-para-brisas da consciência, é a barreira entre mim e o mundo que se oferece para ser perfurada e se aproximar estruturalmente de uma malha tecida que deixa passar uns peixes e não outros e ao mesmo tempo se mantém viva, ainda que em metamorfose, porque só assim pode ser rede sem o parecer e enganar o enganador. Qual o peixe que mais se realiza enquanto peixe? Aquele que é apanhado pelas malhas da rede ou o que, incauto, toma o anzol por alimento? Como responder a estas perguntas sem deixar de ser pescador? Peixe uma vez, peixe para sempre. Com certeza será bem melhor ser peixe no mar bem alto, lá longe das redes e dos anzóis, onde o sol se põe, no horizonte do fim do mundo onde não há terra, só mar e mar. Lá a vida sorri porque o sorriso da vida é o sorrir dos outros peixes que nadam nas mesmas águas, sendo que alguns, não se contentando só em nadar, também querem voar e se fazem voadores, por isso podem ser comidos pelas aves piscívoras. E aí, santo deus, como se a natureza das coisas não estivesse bem, desenvolve-se a nação dos peixes como se homens fossem. Então talvez valha mais ser apenas um simples pescador do que peixe que não se contenta em ser um vivente das águas.

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