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sábado, 26 de maio de 2012

crise e consciência

Cogito ergo sum, penso logo existo, era esta a fórmula cartesiana da consciência. Existiu enquanto informadora da substância pensante e fundamento ontológico: duvido logo sou, se duvido penso, se penso existo. Esta fórmula de consciência durou desde o século XVII de Descartes (1596 - 1650) até ao século XX, até à criação da fenomenologia por Husserl (1859  - 1938). Para Husserl a consciência não é uma substância, a fórmula é diferente: ego cogito cogitatum, eu penso, mas penso sempre alguma coisa, a consciência não é um receptáculo que se pode encher de informação, é um fluxo de vivências intencionais. A característica fundamental da consciência é a intencionalidade. Este modo de intuir e de pensar a consciência foi revolucionário, permitiu compreender a crise das ciências, já que o seu problema fundamental coincidia com a crise da consciência. O trabalho científico é uma actividade intelectual incessante de compreensão, intuição e análise dos fenómenos. Esses fenómenos são o que vem à luz, o que é dado à consciência, sempre projectiva. Só a consciência enquanto fluxo intencional de vivências nos permite colocar qualquer coisa entre parêntesis, a épochê ou redução fenomenológica: isolar intencionalmente um conjunto de factos, opiniões, evidências, provisoriamente, para assim os analisar. Este método é válido para qualquer tipo de actividade cognitiva e requer uma atitude diferente da atitude natural e ingénua. O "objecto" da fenomenologia é o fenómeno isto é, tudo o que é dado à viva consciência e ao qual  temos um acesso directo, sem intermediários. Esse objecto é subjectivo e é também intersubjectivo porque os sujeitos comunicam entre si e sempre de uma forma intencional. Quando falamos em objectividade o que queremos dizer é apenas o resultado de um processo de intersubjectividade. A fenomenologia e o método fenomenológico são provavelmente o que de mais interessante e profícuo já se produziu até hoje no campo das ciências epistemológicas e na filosofia. 
A saída da crise é também uma saída da nova crise epistemológica que acontece neste início do século XXI. As ciências, nomeadamente as ciências sociais como a antropologia, a psicologia, a história, a sociologia e a economia, encontram-se numa crise profunda que se sente na cultura e no terramoto económico-financeiro e social em que o mundo vive hoje. Cada ciência apresenta a sua mundividência, já vivida pelos cientistas e não compreendida pelo sujeito comum. Estão por realizar quase todas as revoluções científicas porque elas não estão ainda devidamente vividas e interiorizadas por um número suficiente de sujeitos. Estão por concluir as revoluções freudiana, darwiniana, marxista, informática, etc. Todas juntas formam uma revolução cultural. Para sair da crise global é necessária uma revolução global, interpenetração e entrosamento recíproco de todas as revoluções parciais que, para se processarem e se concluírem, terão que derivar de uma revolução individual de cada um com base num método fiável e que permita alguma segurança: a revolução fenomenológica.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

VERDADE

Num dos mitos gregos, quando alguém morre, a alma separa-se do corpo e é conduzida ao Hades, reino subterrâneo ou dos mortos, e sujeita a um exercício: beber água do rio Lethes, o rio do esquecimento. Aí permanece durante algum tempo sem memória, e assim, apta a reencarnar num novo animal, que pode ser um  humano. 
Quando chegar a altura própria, entrará num corpo novo acabadinho de nascer e este novo ser terá que recordar o que a alma esqueceu por ter bebido água do rio do esquecimento. A vida dessa pessoa não será mais do que um incessante processo de aprendizagem, de recuperação da memória perdida pela morte do anterior recetáculo, o homem ou animal cujo corpo foi entregue à terra. 

Verdade, em grego,  é aletheia (αλήθεια), negação do esquecimento, privação do efeito da água bebida pela alma no rio Lethes, conhecimento.

A verdade é tema de mitos que muito ocuparam e ainda preocupam muitos pensadores, filósofos, poetas, cientistas, teólogos, artistas. 
Num mundo onde cada vez é mais difícil distinguir o verdadeiro do falso, veja-se a miríade de notícias falsas, como por exemplo, a propaganda das guerras que decorrem neste momento em várias partes do mundo, o cidadão comum é cada vez mais manietado, manipulado, "lobotomizado", principalmente pelos meios de comunicação como as TVs.

Xenófanes, filósofo grego (c. de 570 AC - c. 460 AC) escreveu qualquer coisa como isto:

Os deuses não revelaram, no início,
todas as coisas para nós; com o correr do tempo, entretanto,
pela pesquisa, podemos saber mais acerca das coisas.
Contudo, a verdade certa, nenhum homem a conheceu,
nem chegará a conhecer, nem os deuses,
nem mesmo acerca das coisas que menciono.
Pois ainda que, por acaso, viesse a dizer
a verdade final, ele próprio não o saberia:
pois tudo não passa de teia urdida de pressupostos. (1)


A verdade não é um processo acabado, é sempre relação:  entre pessoas, entre palavras e coisas, entre pessoas e palavras, entre palavras e palavras.

Entre pessoas, como oposição a mentira; 
entre palavras e coisas, como correspondência entre elas; 
entre pessoas e palavras, como adequação do pensamento ao discurso; 
entre palavras sobre palavras, como metalinguagem. 
Pode ser a adequação entre o pensamento e a realidade.
A linguagem (palavra) é a realização, por excelência, dos humanos.
Pela linguagem os seres humanos, na sua singularidade e pluralidade, recriam-se, ampliam o seu grau de consciência individual e coletiva. Tornam-se cada vez mais humanos no seu desenvolvimento numa dimensão espácio-temporal, cultural, num fluir imparável e histórico.

Buscam a verdade o detetive, o juiz, o cientista, o teólogo, o artista, enfim, toda a gente. 
Esta procura confunde-se com a própria vida. 
A vida é emoção, sentimento e razão, descoberta de cada um por si próprio e dos outros por cada um, subjetiva e intersubjetiva, em busca da objetividade, da verdade.

Entre o ser humano e a verdade há um manto adiáfano dificultando o conhecimento e mantendo suficientes camadas de esquecimento que garantem a vida caracterizada como mundo em perpétuo movimento.




(1) in  Brian Magee, As Ideias de Popper,  Cultrix, Un. S. Paulo, 1984, p.30