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domingo, 19 de julho de 2015

O que há de novo para dizer?

        O que há de novo e realmente importante para dizer que não haja já sido dito? Bem vistas as coisas, depois de Platão e de Aristóteles e da gigantesca panóplia de comentadores seus, parece que não há nada de novo sobre a terra que valha a pena refletir em grande profundidade. Esse trabalho já terá sido feito. Contudo nenhum pensador ou cientista, tanto quanto se pode saber, explicou, desvendou ou descobriu o porquê dos enigmas que se mantêm desde sempre e provavelmente para sempre: o enigma do mundo e da vida. A estes dois enigmas outros se encontram associados: a origem do universo, o tempo, o finito e o infinito, o amor, a morte e a fala. Muito provavelmente jamais aqueles enigmas serão explicados, justificados ou compreendidos. As dimensões a que chamamos razão, emoção e sentimento mostram, a cada dia que passa, imensas limitações. Todas as reflexões que surgem, e que podem vir a manifestar-se, baseiam-se na linguagem quer falada quer escrita e esta linguagem foi, é e será sempre um problema para si própria. Todo o conhecimento teórico é de natureza metafísica. Há sempre uma distância infinita entre as palavras e as coisas. Há sempre um hiato entre dois ou mais seres racionais que comunicam, a racionalidade é sempre afetada pela emoção, não há uma razão pura tal como Kant postulou. Por sua vez, a emoção é também determinada por fatores arcaicos como o marcador somático, referido por António Damásio. Por outras palavras, não há, nem é possível, uma comunicação perfeita.
        A nós, pequeníssimos grãozinhos de poeira do século XXI foi-nos legado um registo de memórias muito maior do que aos nossos antepassados. São gravações na pedra, no pergaminho, no papiro, no papel, nas fitas magnéticas, nos discos rígidos dos computadores e na gigantesca e complexa rede a que chamamos internet. Por isso é possível fazer progredir, com mais eficácia, o trabalho científico na área da linguagem e  da fala. Tudo o que se faz tem por detrás a linguagem, por isso tudo o que se pensa e se projeta, é em primeiro lugar palavra, só pela palavra se diz o que se pensa. A palavra é o som emitido pelo aparelho fonador. Esta emissão ou projeção deriva da necessidade do organismo se expressar para comunicar, cujo sentido primeiro é pôr em comum, reunir, tornar único, partilhar. A palavra possibilita a comunidade, viver humanamente é partilhar, sendo a partilha primeira a da fala. Dizer ou falar é emitir palavras na presença do outro para o outro, escrever é falar em silêncio, soliloquiar e, assim, tornar-se potencialmente a companhia de algum outro. Desde que Platão escreveu até hoje, talvez milhões de pessoas tenham partilhado, principalmente por meio de traduções, a sua escrita. Essa comunidade anónima, na medida em que partilha o texto de Platão, no todo ou em parte, forma aquilo a que poderemos chamar "Platão". O que poderá ser Platão no século XXI senão a leitura e a partilha, de algum modo, dos textos que nos deixou há dois mil e quinhentos anos? Platão já não existe, o que há é uma constelação de textos, traduções, comentários, críticas,  que estabelecem alguma relação entre si. De qualquer modo as palavras que escreveu surgiram da necessidade, assim como radicam na necessidade o ato de leitura, de interpretação, de releitura, de reinterpetação e assim sucessivamente. 
        Se nos ativermos à dimensão fundamental da vida, o tempo, e as suas mais comuns ou possíveis interpretações, sabemos, tal como nos ensinou Agostinho (354 - 430), teólogo e filósofo cristão muitíssimo influente, que há sempre uma partição do mesmo em três conceitos: passado, presente  e futuro. O passado consiste apenas num conjunto ou constelação de memórias vivificadas, não se pode dizer que tenha uma existência atual, o presente é aquela ínfima ligação entre o passado e o futuro, é o vivido, pensado aqui e agora, neste preciso instante, o futuro não pode ser mais do que uma projeção fundada no passado. Passado e futuro são tempos da "alma", são tempos apenas do pensamento quando, e só quando, este se exerce. Não há passado nem futuro, tal como poderemos deduzir do pensamento de Nietzsche (1844-1900), o que há é um eterno presente quando é refletido e vivido intensamente. Como é impossível desviarmo-nos da dimensão temporal para tentarmos compreender seja o que for, tudo o que podemos dizer não passa de uma narrativa que jamais poderá ter fim. Tal como Heraclito   (535 a C - 435 a C) terá revelado, tudo flui, a mudança constante é característica primordial da realidade: ninguém pode tomar banho duas vezes na água do mesmo rio. Tudo e todos estão em perpétua mudança, pelo que é difícil, (por que não impossível?) pensar aquilo que é. Nada é, de facto. Tudo foi, está sendo ou será. E este é de facto o problema da palavra: qual é a realidade que denota quando a partilho ou a mostro num determinado momento? A palavra é a mesma, apresenta a mesma grafia ou a  mesma característica fonética doutros momentos ou doutros contextos. Mas se a realidade se encontra em permanente metamorfose no presente, a palavra permanece sempre aquém do mundo ou das coisas. A linguagem vai atrás do mundo, as palavras vão sofrendo alterações de significado e enquanto umas vão morrendo outras vão nascendo, tal como os seres. Não somos os mesmos de há minutos ou de há anos atrás. No limite teríamos de produzir a cada momento uma palavra nova para denominar determinado ente que se encontra em mudança, e que assim já é outro, isso significaria não pensar. Haveria um bloqueio do nosso 'sistema operativo' devido à impossibilidade lógica de nomear a cada instante um novo ente e ao mesmo tempo devido ao paradoxo do sujeito nomeador se encontrar também ele em mudança.  O pensamento é movimento que se intui  a si próprio e se desenha, se desenrola, se desdobra. 
        A sinapse, bioquimicamente, a "unidade" do pensamento, é fluxo de neurotransmissores entre neurónios, é movimento interno no cérebro, mudança, troca, ressalto, complexo é certo, como é certo também que determina o pensamento, nomeadamente sob a forma de palavra. Cabe aos cientistas descobrir quantas e quais sinapses, em que sítio e como funcionam, para que melhor se compreenda este fenómeno tão espantoso que é a palavra. A palavra não pode dizer a realidade não linguística porque a realidade não é tão estática como ela. A palavra filosofia terá sido dita ou escrita pela primeira vez por Pitágoras (571 aC - 495 aC): Φιλοσοφία.  A grafia é a mesma volvidos mais de dois mil anos, mas o significado da palavra filosofia apresenta respostas diferentes na atualidade, como é diferente o significado do termo filosofia em Descartes, mathesis universalis,  em Hegel, Ciência das ciências ou em Marx, transformação do mundo. O pensamento como realidade que se pode pensar a si própria é uma ficção necessária, a palavra é a ficção de si própria e da outra realidade para a qual  aponta. Pela palavra se diz, mas o dizer não é mais do que uma efabulação mais ou menos lógica, mais ou menos aceitável ou compreensível sobre aquilo que supomos serem sinais ou indícios da realidade.
        Como a realidade é em si própria mudança, fluir incessante pela temporalidade, há sempre novidades para dizer, novas realidades e necessariamente novas palavras. Palavras velhas com significado novo e palavras novas nascidas do ventre das velhas que hão-de ser subsumidas ou substituídas por outras ainda mais novas e assim sucessivamente. O novo na linguagem, como em tudo o mais, não é mais do que a metamorfose do velho.

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