talvez desde que me conheço,
que me encheram a cabeça,
não só de ideias bonitas,
mas também de alguns fantasmas,
como as profecias do fim do mundo,
o apocalipse, o medo da morte, o pecado.
Tentaram colar-me à pele
sensações manipuladas;
despejaram na minha (in)consciência
o medo de Deus, o medo da natureza,
o medo da polícia, o medo da professora
(da palmatória), o medo do sexo,
o medo da autoridade.
Quiseram enfiar-me na moleirinha
o ódio ao cigano, o desprezo pelos desvalidos,
por aqueles que não têm onde cair mortos.
Tentaram incutir-me a indiferença
pelas pessoas de "cor", pelas prostitutas,
pelos homossexuais, pelos comunistas.
Quiseram ensinar-me a respeitar
os discursos gravados do ditador
e a escutar com atenção as conversas
em família do presidente do conselho.
Quiseram fazer de mim um aprendiz da miséria,
tentaram (des)educar-me
para ser tolerante com o intolerável.
Quiseram ensinar-me a ralhar,
mostraram-me como se dá porrada,
como se leva bordoada,
como não se pode fugir à pancada.
Por isso, uma parte da minha vida
tem sido manter a memória das coisas boas,
e a outra, insistentemente, desaprender,
rebentando as correntes
que me prendem a alma e libertar-me,
sem perder tempo e sem ter pressa.
Tudo isto, só porque o meu sonho,
ou o objetivo da minha existência,
é se tiver sorte e se chegar a velho,
poder morrer feliz como se estivesse a nascer,
sentindo a vida a desdobrar-se
em toda a sua magnificência,
a pulsar-me nas veias
com a inteira alegria do mundo,
como a música de Mozart que nos
embebeda de universo,
como as pinturas de Miró
que nos mostram tudo pela primeira vez
ou como a lírica de Camões
que nos ensina o amor.
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