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quarta-feira, 8 de julho de 2015

DESAPRENDER

Tenho a sensação, 
talvez desde que me conheço,
que me encheram a cabeça, 
não só de ideias bonitas, 
mas também de alguns fantasmas,
como  as  profecias do fim do mundo,
o apocalipse, o medo da morte, o pecado.
Tentaram colar-me à pele
sensações manipuladas; 
despejaram na minha (in)consciência
o medo de Deus, o medo da natureza,
o medo da polícia, o medo da professora
(da palmatória), o medo do sexo,
o medo da autoridade.
Quiseram enfiar-me na moleirinha 
o ódio ao cigano, o desprezo pelos desvalidos, 
por aqueles que não têm onde cair mortos.
Tentaram incutir-me a indiferença 
pelas pessoas de "cor", pelas prostitutas, 
pelos homossexuais, pelos comunistas.
Quiseram ensinar-me a respeitar 
os discursos gravados do ditador
e a escutar com atenção as conversas 
em família do presidente do conselho.
Quiseram fazer de mim um aprendiz da miséria,
tentaram (des)educar-me 
para ser tolerante com o intolerável.
Quiseram ensinar-me a ralhar,
mostraram-me como se dá porrada,
como se leva bordoada, 
como não se pode fugir à pancada.
Por isso, uma parte  da minha vida 
tem sido manter a memória das coisas boas,
e a outra, insistentemente, desaprender,   
rebentando as correntes
que me prendem a alma e libertar-me,
sem perder tempo e sem ter pressa.
Tudo isto, só porque o meu sonho, 
ou o objetivo da minha existência,
é se tiver sorte e se chegar a velho, 
poder morrer feliz como se estivesse a nascer,
sentindo a vida a desdobrar-se 
em toda a sua magnificência,
a pulsar-me nas veias 
com a inteira alegria do mundo, 
como  a  música de Mozart que nos 
embebeda de universo, 
como as pinturas de Miró
que nos mostram tudo pela primeira vez
ou como a lírica de Camões 
que nos ensina o amor.

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