Páginas

domingo, 25 de janeiro de 2015

Manipulação

Manipulação deriva de mão, manus em latim. Manipular significa mexer com as mãos, usar o manípulo. Este pode ser uma  quantidade de coisas que cabe no vão dos dedos polegar e indicador unidos pelas extremidades mas também uma peça que quando acionada manualmente coloca um determinado mecanismo em funcionamento. Os títeres, bonifrates, fantoches ou marionetas apresentam-se como o exemplo e o símbolo da manipulação. O objeto, boneco ou mecanismo manipulado é absolutamente controlado pelo seu manipulador, aquele que decide quais os movimentos que tais títeres ou mecanismos deverão apresentar.
Devido à cultura em que os seres humanos se encontram imersos, por razões de ordem religiosa, ideológica ou filosófica, estes podem recusar-se sistematicamente a realizar o papel de títeres. Por exemplo, Agostinho (354 - 430) filósofo cristão de Hipona defendeu a existência do livre-arbítrio como capacidade que qualquer pessoa tem em si e lhe permite a livre escolha de modo a realizar o seu próprio destino. Também Kant (1721-1804), filósofo prussiano, defendeu que existe a razão prática, a faculdade do homem decidir a sua vida de acordo com a boa vontade e construir assim o seu próprio destino. A filosofia kantiana recusa liminarmente a instrumentalização do ser humano. Esta ideia é clara numa das máximas que nos fornece: "Age de forma a que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na de qualquer outra, sempre ao mesmo tempo como um fim e nunca como um meio". A relação entre os seres humanos não pode nunca, nesta perspetiva, ser uma relação com fins exteriores à própria relação, consuma-se em si mesma, exerce-se no respeito absoluto pelo outro. Nesta medida ninguém deverá ser manipulador ou manipulado. Também Sartre (1905 - 1980), filósofo francês que recusou o prémio Nobel da literatura em 1964, afirmou que o homem está condenado a ser livre na senda da ideia de que para o ser humano a existência precede a essência. Por isso o homem não está pré-definido, não há essência de homem ou de mulher, ou se a houver só no terminus da existência, aquando da morte. Apesar de haver ainda pensadores influentes que procuram contrariar a ideia de livre-arbítrio ou de liberdade recorrendo fundamentalmente a um argumentário de raiz "científico-determinista", não podemos deixar de concordar com Kant quando constata dois tipos de leis a que os homens estão sujeitos: as leis da natureza e as leis humanas. Aquelas de natureza matemática e estas baseadas nos processos psicossociais de normalização, no livre-arbítrio, na liberdade e na faculdade legisladora da razão.
O pensamento filosófico dominante postula a liberdade, o livre arbítrio e a responsabilidade, de tal forma que esta é o alicerce da convivência e mesmo do desenvolvimento do curso da história. Por conseguinte o ser humano não quer em geral ser dominado e por isso, racionalmente também não poderá querer dominar seja quem for. Recusa-se terminantemente a ser colonizado, admoestado, escravizado ou manipulado. Tal é o exemplo que Platão (428-348 a. C.), filósofo grego, nos dá na obra "República" no livro VII da mesma onde nos expõe a célebre alegoria da caverna: o prisioneiro que se solta das grilhetas e foge da caverna para encontrar o mundo real e encarar a luz do Sol já não quer voltar à caverna a não ser para tentar salvar os seus antigos companheiros e partilhar com eles a aventura do conhecimento porque considera que a ignorância é o maior dos males do homem.
A manipulação no século XXI é um fenómeno que caminha para o extremo devido à globalização principalmente pela televisão e pela Internet. Nada nos garante que não vemos apenas sombras projetadas no fundo da caverna, agrilhoados que estamos desde sempre aos fios invisíveis dos nossos manipuladores, aqueles que decidem grande parte do que fazemos, comemos, vemos ou ouvimos.
Recordo-me de ter assistido no início da década de oitenta do século XX à abertura oficial do ano letivo da Universidade Clássica de Lisboa. Havia um forte diferendo entre os estudantes e o ministro da educação devido ao aumento das propinas, do preço das refeições escolares e à redução dos serviços médico-sociais, ainda assim o presidente da associação académica, representante dos estudantes teve direito a uma intervenção na dita cerimónia. Os estudantes presentes em grande número aplaudiram entusiasticamente o discurso do seu colega enquanto que perante a intervenção do ministro, nenhum aluno bateu palmas. Contudo, no telejornal da noite, o que os cidadãos telespetadores puderam ver foi o discurso do ministro a terminar e a ovação dos estudantes a surgir. Uma reportagem com imagens e sons mostrados na televisão e que devido à montagem deu a entender ao grande público que afinal os estudantes até aplaudiram o ministro, o que não foi verdade. Este é apenas um pequeno exemplo de manipulação jornalística que aconteceu numa televisão pública, mas como sabemos há milhares de exemplos que poderíamos desmontar em qualquer televisão pública ou privada. Também pudemos assistir pela primeira vez na televisão à guerra em direto aquando da invasão do Iraque em janeiro de 1991. Contudo, as imagens e os relatos que nos eram transmitidas eram apenas a perspetiva das forças invasoras ocidentais lideradas pelos EUA. A televisão ocidental apenas fornecia um ponto de vista e por isso contribuiu para uma intensa propaganda norte americana, inglesa e francesa. É legítimo perguntar pela outra ou outras perspetivas da guerra. Houve mesmo alguns especialistas de análise militar e política que asseveraram que apesar de nunca ter havido tantas imagens e em direto, nunca uma guerra fora tão mal compreendida nas suas complexas dimensões como as causas, os meios e as finalidades. Houve imensa manipulação e a incompreensão desta guerra levou a que em março de 2003 houvesse nova invasão do Iraque perpetrada com base no argumento falacioso de que o Iraque dispunha de armas de destruição massiva, apesar de terem havido manifestações contra ela à escala global e em praticamente todas as grandes cidades do mundo ocidental. Muitas outras invasões e guerras se desenvolveram e desenvolvem desde então com o "consentimento" de muitos milhões de pessoas que quase só se informam pela televisão ou pelos chamados jornais de "referência".
A manipulação foi e é muito provavelmente o maior problema da humanidade porque radica na negação do outro como ser racional, autónomo e portanto ético e moral. Ela  baseia-se na imoralidade, onde apenas lidera o mais poderoso que impõe o seu poder através da demagogia, do populismo e da manietação dos cidadãos que assim se veem constrangidos por uma informação apenas unidirecional, não multidisciplinar nem multiperspetivada. Por isso o cidadão comum sente muita dificuldade em compreender a realidade sócio-política e económica e vive a angústia de quem sabe que lhe faltam muitas premissas para efetivar o seu pensamento, já que esses dados lhe são negados e ele próprio realiza a sua consciência com a certeza da incerteza, isto é, com o conhecimento da incompletude do objeto transcendental muito aquém do objeto concreto adequado à sua vontade e à sua necessidade de saber.