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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

humanidade/animalidade

     Há algum tempo, no decorrer de um diálogo, alguém versado em ciências físico-químicas disse que não gostava de filosofia por ter tido um professor-filósofo que asseverava que os animais não pensam. Mostrei de imediado a minha discordância acerca de tal ideia: os animais, a que vulgarmente se chama irracionais, pensam. Para sabermos se os animais pensam, em primeiro lugar há que ter deles o maior conhecimento possível e em segundo lugar saber o que significa pensar. Pensar significa formar ideias, refletir e imaginar. As ideias serão com certeza, pelo menos em parte, imagens relativas à realidade dada aos sentidos, isto é comum aos humanos e aos outros animais.
     Vulgarmente atribui-se ao instinto a capacidade e as competências inteligentes dos animais, e diz-se que eles se limitam a seguir as determinações pré-programadas geneticamente pela natureza. Por isso também se diz que os animais são como que autómatos e não apresentam a característica do livre-arbítrio. Nós, de um modo ou de outro, incutimos desde muito cedo, nos jovens, as ideias da culpa e da responsabilidade com base na capacidade de decidir. Deste ponto de vista, os animais não decidem porque antes disso é necessário o livre arbítrio e a deliberação. Se não decidem então não poderão ter responsablidade de nada, não têm direito a identidade jurídica nem se lhes pode atribuir direitos ou deveres, não têm uma moral, não são políticos.
     A filosofia sempre colocou os seres humanos fora da sua animalidade, ou quando muito, considerava-os animais racionais, principalmente por terem um desempenho linguístico bem diferente daquilo que se conhecia dos outros animais, esse desempenho aferia-se sobretudo pela dupla articulação, no fundo um desempenho lógico-simbólico pela palavra falada e escrita. Os animais não escrevem, ou pelo menos não escrevem de modo semelhante aos humanos, os animais inscrevem-se, marcam territórios e agem de acordo com a sua inscrição no seu habitat. Há muitos seres humanos que nada escrevem e cujo trabalho simbólico é quase inexistente ou muito incipiente. Os nossos antepassados do paleolítico, na perspetiva das filosofias humanistas, estariam mais próximos da animalidade pura do que os nossos contemporâneos porque mais próximos da vida natural. Tendia-se a identificar, em larga medida, a animalidade com a natureza e colocava-se o homem como um elemento fora da natureza, ou dentro dela para a dominar, para a instrumentalizar. Por isso os animais eram, tal como os primeiros escravos, uma espécie de ferramenta animada.
     Há pouco tempo (agosto de 2013) Jason Bruck, investigador da universidadde de Chicago, descobriu que os golfinhos têm uma memória aproximada à dos seres humanos, atribuem nomes próprios a cada membro da sua espécie e comunicam através de mensagens de grande complexidade. Onde está a diferença fundamental entre o mundo humano e o mundo animal? Estará naquilo que habitualmente se designa por consciência? Não deixa de ser interessante um artigo do filósofo inglês John Gray, do livro "sobre humanos e outros animais", intitulado "a pobreza da consciência" em que cita Margulis: "os pequenos mamíferos comunicam o terramoto ou o aguaceiro que se aproxima. As árvores emitem 'voláteis', substâncias que avisam as suas vizinhas que existem larvas a atacar as suas folhas (...) as alcateias de lobos e as extintas manadas de dinossáurios recorrem a uma comunicação propriopcetiva social (...) Gaia, a terra fisiologicamente regulada, dispunha de uma comunicação proprioceptiva global muito antes da humanidade ter evoluído." A consciência tem nesta perspetiva pouca importância para a compreensão do funcionamento do mundo. O que é determinante é a sensação e a perceção, que existem igualmemte no reino das plantas e dos animais. O mundo dado pela consciência é apenas um pequeno fragmento do que é necessário para a sobrevivência, por isso a consciência, essencialmente apresenta uma grande pobreza.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

deriva

ancoragem dá coragem
há uma direção desconhecida
o inexorável destino, a moira
desconhecemo-lo absolutamente
talvez seja essa consciente ignorância
a fonte do nosso alento
o vento obedece a mil e um desígnios
não nos vamos assustar
seguramos firmemente as nossas mãos nas mãos
se o navio se afundar também nos afundaremos
mergulharemos no abismo infinito
onde nos encontraremos incessantemente
por cada minuto percorrido
os tubarões não nos comerão
a sua barriga já está cheia do lodo
retirado para o navio partir

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Desabafo


O individualismo,  o ostracismo,
a indemnização da finança,
o pecado e a pena capital,
a violência escondida e a publicada,
o radar e a multa,
os filhos da puta,
a parada militar,
as insígnias e altas patentes,
o corruptível juiz,
a guerra sem estrelas,
as campanhas de caridade, 
a livre concorrência,
o beija-mão bajulador.
A dor de cotovelo,
as picadas dos mosquitos,
as tremelgas e os moscardos,
o aguilhão dos carrascos,
os top ten, top hundred, top thousand
Os inacessíveis carnavais de Veneza,
a realeza, o nobre e o plebeu,
o politicamente correto,
o sorriso amarelo profissional,
a insónia existencial, o cadáver na praia do mar do meio.
A citação obscena, a miss e o mister, tudo e tudo,
o vírus informático, o vírus coroado, o snobismo,
o veganismo e as modas das hordas.
O luxo imoral inestético, antiético,
o salário do Ronaldo, a pobreza do Aristides e
os colonatos de Israel.
Os muros sem vergonha e
a dignidade do trabalho; 
Arbeit macht frei (o trabalho liberta!)
O frango a suar hormonas
e a agricultura superintensiva.
O centro do mundo e a liberdade estátua.
A ponte de S. francisco, 25 de Abril, tão parecidas!
O Ferrari do Papa e a viagem espacial turística do Musk.
As homenagens, o culto da personalidade, 
o  terceiro mundo, a terceira idade, a terceira vaga.
A guerra santa, o fascismo humanismo,
a fatura da fratura e da rotura.
Fartos mas vivos,
não nos hão-de ladrar os sonhos.