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sexta-feira, 23 de março de 2012

a matemática e o corpo

Pitágoras (580 a.C - 500 a. C) terá sido o fundador da matemática para além de ser considerado também o pai da filosofia. A partir das ideias pitagóricas foi possível o platonismo e tudo o que se lhe seguiu tal como as cosmovisões de Galileu, Kepler, Newton e Einstein. Para os pitagóricos, (creio que o somos quase todos, mesmo aqueles que nunca ouviram falar de Pitágoras), tudo é número. Foi por isso que Descartes (1596-1650), filósofo e matemático, criou o chamado plano cartesiano que depois de explorado e aperfeiçoado possibilitou o avanço da geometria e convenceu-nos de que a realidade pode toda ela ser representada por equações do tipo f(x)= x2. O ecrã do computador é uma actualização do plano cartesiano. Qualquer figura em qualquer contexto pode ser descrita através do rigor da geometria analítica. Galileu (1564-1642) também partilhava uma concepção semelhante: a natureza está escrita em caracteres matemáticos, embora se distinguissem as qualidades primárias (peso, extensão, volume, forma) das qualidades secundárias (cheiros, cores, sabores, sons) das coisas. As primeiras, objectivas e quantificáveis e as segundas, subjectivas e não matematizáveis. No entanto, com a evolução técnica, progressivamente a realidade, do ponto de vista cognitivo, tem vindo a ser absorvida pela matemática. Hoje as cores e os sons são expressos através de equações matemáticas, por exemplo, no intervalo do espectro electromagnético da luz, cada frequência equivale à sensação de uma cor.

Já no século XX Einstein veio a afirmar que a matemática e a física são uma mesma linguagem. Cumpria-se assim o vaticínio e o veredicto Pitagórico: tudo é número.
E assim, durante 2600 anos a humanidade repetiu vezes sem conta a "oração": tudo é número. E creio que ainda hoje continuamos nesta senda: tudo é matematizável. E até professamos que o que não está já matematizado ainda não é conhecido. É até estranho que não haja o prémio Nobel da matemática.
A matemática é o produto mais abstracto que a mente humana pode criar (ou descobrir). É forma sem conteúdo, tal como a lógica, não fala de nada, nada refere, é apenas estrutura. Por isso ela parece tão difícil para muitos jovens em idade escolar. A matemática é o exercício por excelência do intelecto e por ter sido tão valorizada, entrámos numa dinâmica de aprendizagem intelectualista.

O intelectualismo exacerbou o intelecto como se o ser humano fosse apenas pensamento sem corpo. Por isso também a civilização ocidental negou e escravizou o corpo ao longo dos séculos. O prazer corporal foi considerado pecado, já o prazer intelectual não. A emoção nem sequer teve direito a fundamento ontológico, apenas a razão foi valorizada e mesmo deificada, porque considerada o princípio, o fim e a fonte de tudo o que seria de pensar. Só na segunda metade do século XX a emoção, e com ela o corpo, começam a ser tidos como realmente importantes e determinantes na compreensão, na educação e na própria vida. Com Daniel Goleman aprofundou-se o conceito de inteligência emocional e com Damásio a relação entre razão e emoção.

Encontramo-nos, provavelmente, na transição para um novo paradigma em que o corpo poderá vir a ser aceite sem preconceito, já que todo ele é uma unidade de emoção e de razão. Os tempos vindouros serão talvez interessantes porque o corpo e as relações entre os corpos já não sofrerão o estigma do pecado que será apenas uma ideia do passado. Por isso gente tão interessante como Eduardo Galeano (n. 1940) jornalista e escritor  uruguaio diga com toda a razão: "a santa madre igreja corrigirá o sexto mandamento que passará a mandar festejar o corpo."

O corpo vale mais do que o número porque o corpo é matematizável e a matemática não é corporizável. Mas o que importa é que sigamos cada vez mais a vivência dos corpos na sua emoção que procede em muito dos sentimentos, e que a valorizemos tanto como o intelectualismo matemático. Talvez aí, nessa clareira emocional e consciente, num equilíbrio entre razão e emoção, a vida passe a ter um sentido que não se encontre na morte ou no que virá depois dela e assim seja um fim em si mesma. Como resposta às crises políticas e económicas surge cada vez mais a expressão "as pessoas não são números", precisamente porque até agora foram mesmo números.

Os estudos neurológicos apontam para maior felicidade intelectual quanto maior for a felicidade corporal. Talvez haja um novo Renascimento que aponte para o lema "mente sã em corpo são", tal como nos tempos áureos da antiguidade clássica, mas com uma diferença: corpo e mente como duas faces da mesma moeda. Já não faz sentido o dualismo cartesiano do corpo e  da alma como se o corpo fosse uma máquina comandada por um fantasma, tal como denunciou Damásio na obra "O erro de Descartes".

A crise que ora vivemos é também a crise dos dualismos que estão a entrar no campo do absurdo e portanto a ser desviados do domínio científico: corpo/espírito, feminino/masculino, feio/bonito, céu/inferno, alto/baixo, gordo/magro, curto/comprido, centro/periferia, etc. ... A realidade é muito  complexa e não pode ser compreendida a partir de balizas duais e simplistas sob pena de não se progredir na descrição compreensiva da mesma. Por isso cada vez mais a actividade científica é trabalho cultural e filosófico.






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