Páginas

quinta-feira, 29 de março de 2012

O mito de Narciso

O epílogo do ensaio de Orhan Pamuk "O romancista ingénuo e o sentimental", fala de de um livro de Lukács antes de se tornar marxista, "A teoria do romance", onde o autor "tenta descobrir por que é que a humanidade tem necessidade espiritual de um espelho (um espelho à sua medida, personalizado) chamado romance." (1) Depois de ter lido o ensaio de Pamuk senti necessidade de pensar a questão do espelho, enquanto pintura, romance, filme, peça de teatro ou  trivial objeto onde nos vemos todos os dias na casa de banho, no quarto, no corredor da casa, no carro, no elevador do prédio.  Os nossos olhos e os dos outros, quando os fitamos como se estivéssemos a jogar ao jogo do sério funcionam como espelhos. Diz-se que os olhos são os espelhos ou as janelas da alma. 
A palavra espelho deriva do latim speculum que originou o verbo especular, cujo significado primeiro é refletir. Outros significados se seguiram como, por exemplo, o de especulação financeira, dado que o dinheiro é uma realidade virtual, um produto mental, simbólico. O espelho enquanto objeto ou parte de uma paisagem (espelhos de água naturais ou artificiais), é a primeira forma de realidade virtual. O que se vê no espelho é virtual, apenas existe na mente de quem olha ou observa, é a imagem virtual que num plano é simétrica à realidade material que lhe deu origem. 

Hoje há outras fontes de realidade virtual baseadas nas tecnologias de ponta derivadas da conjugação da informática com a biologia onde a psicologia trabalha para investigar novas formas de perceção. A realidade virtual é sempre mental, é sempre um fenómeno cerebral. Mesmo que saibamos que dois espelhos paralelos se refletem até ao infinito, esse conhecimento só é possível porque experimentámos esse facto em direto, pela observação, que é um processo de mentalização. Por isso nunca nos conseguiremos desenvencilhar do dilema kantiano das coisas para nós e das coisas em si. Nós sabemos que as imagens estão lá, refletidas até ao infinito, mas não o podemos comprovar, só o podemos pensar. Descartes tivera toda a legitimidade quando afirmara que a razão ou pensamento é mais certeira do que os sentidos que nos enganam. A verdade  é está no pensamento e não noutro lado qualquer.

Mas porque é que qualquer ser humano tem necessidade de um espelho à sua medida?

Não acreditamos que seja por ordem ou vingança dos deuses como acontece no mito de Narciso de acordo com Ovídio e Pausânias. Mas também não podemos esquecer ou ignorar este mito. 
Na versão da obra "Os Mitos Gregos" de Robert Graves, baseada em Ovídeo, Pausânias, Cónon e Plínio, o vidente Tirésias anunciou à mãe de Narciso, numa consulta, que o seu filho viveria até longa idade, desde que nunca se conhecesse a si próprio. Narciso era de uma beleza avassaladora e destroçava corações de ambos os sexos que rejeitava com crueldade por ser muito orgulhoso. Ele só podia ser belo,  era filho de um deus (Cefiso, o deus-rio) e de uma ninfa (Ninfa azul Liríope) que o deus cingiu e seduziu. Uma outra ninfa surge na história, a ninfa Eco que havia sido castigada por Hera porque ela lhe desviou a atenção do olhar ciumento sobre as ninfas concubinas de Zeus. Por isso Eco apenas podia repetir as palavras que os outros diziam. Mesmo assim conseguiu aproximar-se de Narciso, mas ele fugiu dizendo: mais depressa morreria do que te deixaria dormires comigo.

Narciso tinha um persistente admirador, Amínio, que se suicidou à sua porta e pediu aos deuses que lhe vingassem a morte. Artemisa considerou esse desejo e fez com que Narciso se enchesse de amor e ao mesmo tempo que esse amor nunca se consumasse.

Narciso abeirou-se de um regato de águas límpidas e, quando exausto, se debruçou sobre ele para mitigar a sua sede, enamorou-se da sua própria imagem aí refletida. Tentou enlaçar e beijar o rapaz que via, mas rapidamente se apercebeu que era ele próprio, e assim ficou horas e horas a fio  a olhar as águas. Sentia-se minado pela dor, mas ao mesmo tempo esse sofrimento era delicioso, pelo menos o outro "eu" ser-lhe-ia sempre fiel acontecesse o que acontecesse. Eco sofria com ele apesar de não lhe ter perdoado. Nela ecoou a sua voz: "Ai!... Ai!..., quando ele enterrava no peito um punhal; e as suas últimas palavras: "Oh, meu jovem, meu inutilmente bem-amado, adeus!"
"O sangue dele embebeu a terra em redor, e desta brotou uma flor, um narciso branco de corola vermelha, do qual ainda hoje se extrai um bálsamo (...) que aconselham ser de grande utilidade para as infeções dos ouvidos e um vulnerário que cura feridas e alivia o cieiro". (2)

Existem muitas outras versões mais ou menos populares do mito de Narciso e parece que têm uma coisa em comum: o amor próprio (narcisismo) e a morte que acaba por ser o resultado do anúncio do vidente Tirésias.  A questão ou tema central do mito de Narciso é a possibilidade do conhecimento. Se ficarmos agarrados a nós próprios, ensimesmados, todo o sentido da vida desaparecerá, cairemos no absurdo que trará inevitavelmente a morte, a libertação de todo o sofrimento que porá termo à náusea da vida. Aqueles que são manietados (voluntariamente ou não), enquanto assim permanecerem, jamais se conhecerão a si próprios, jamais serão felizes, e ao mesmo tempo impedirão que os outros vivam a felicidade. Por isso a vida enquanto processo incessante de conhecer é sempre breve, decorre num tempo que não é o tempo linear aristotélico, soma de antes e depois, mas é o tempo sentimental, subjetivo, consciente, refletido, de que Pamuk nos fala no seu ensaio "O romancista ingénuo e o sentimental".
O conhecimento (absoluto) só é acessível aos deuses, quem não é deus apenas terá acesso a imagens. A visualização incessante das mesmas trará necessariamente a morte. Essa morte é ao mesmo tempo uma transformação, Narciso dá lugar a uma flor que evocará a memória do seu ser. O mito funciona como um paradigma e permite-nos saber com o que podemos contar: se a nossa atitude for como a de Narciso semearemos sofrimento.

Se o conhecimento é vedado aos não deuses e também aos homens, não lhes é de todo vedada a procura da verdade. Essa procura é sempre feita através de um espelho: uma obra de arte da literatura, do cinema, da música, da pintura, da escultura, arquitetura, etc.. É na fruição (criação ou interpretação) das diversas formas de arte que ocorre a verdade (desocultação) que contraria o esquecimento, neglicência da própria vida.

É na obra de arte que se encontra o alter-ego, uma necessidade premente de qualquer ser humano. O ego não é nunca um "eu puro", solipsista, é sempre uma síntese da relação do "eu" real com todos os outros "eus". Mário de Sá Carneiro evidenciou-o bem no poema:

Eu não sou eu nem sou o outro, 
Sou qualquer coisa de intermédio: 
     Pilar da ponte de tédio 
     Que vai de mim para o Outro. 
                  
(Lisboa, fevereiro de 1914 

Tal como num jogo de espelhos que nos dá o infinito, a vida com pregnância, aquela que se vive de um modo próprio, sem má-fé, sem renúncia dos legítimos desejos do eu, também nos dá, não o infinito, mas o sentido do infinito, que consiste nessa busca incessante daqueles que não querem morrer ignorantes. A filosofia ensinou-nos, há mais de dois mil e quinhentos anos, que a ignorância é o maior dos males. A ignorância é sempre um não conhecimento de si próprio, um esquecimento, uma ausência de interação com o outro, principalmente naquilo que o outro apresenta como a superação de si próprio: a obra de arte. A vida estritamente individual, para além de necessária criação de autonomia pela interação compreensiva com o outro, também pode ser uma obra de arte, desde que seja a busca incessante de um centro. Este centro descobre-se progressivamente pela reciprocidade, no dar e receber, na relação entre os corpos, e não na relação entre o corpo e a sua imagem. A relação com o espelho no sentido narcísico é importante mas é apenas o início ou o reinício da descoberta de si próprio, uma pausa temporária e cíclica que coloca entre parêntesis, provisoriamente, a relação com o outro, um ponto de situação existencial, base para a criação de sentido que se vai adivinhando pelo fio condutor de sentimentos, emoções e razões: a peça do puzzle que configura os humanos na sua interessante ambiguidade.


(1) O. Pamuk, O romancista ingénuo e o sentimental, Ed. Presença, 2012, p. 131
(2) R. Graves, Os Mitos Gregos, Dom Quixote, 3.ª ed, 2005. p. 293

Sem comentários:

Enviar um comentário