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quarta-feira, 16 de maio de 2012

VERDADE

Num dos mitos gregos, quando alguém morre, a alma separa-se do corpo e é conduzida ao Hades, reino subterrâneo ou dos mortos, e sujeita a um exercício: beber água do rio Lethes, o rio do esquecimento. Aí permanece durante algum tempo sem memória, e assim, apta a reencarnar num novo animal, que pode ser um  humano. 
Quando chegar a altura própria, entrará num corpo novo acabadinho de nascer e este novo ser terá que recordar o que a alma esqueceu por ter bebido água do rio do esquecimento. A vida dessa pessoa não será mais do que um incessante processo de aprendizagem, de recuperação da memória perdida pela morte do anterior recetáculo, o homem ou animal cujo corpo foi entregue à terra. 

Verdade, em grego,  é aletheia (αλήθεια), negação do esquecimento, privação do efeito da água bebida pela alma no rio Lethes, conhecimento.

A verdade é tema de mitos que muito ocuparam e ainda preocupam muitos pensadores, filósofos, poetas, cientistas, teólogos, artistas. 
Num mundo onde cada vez é mais difícil distinguir o verdadeiro do falso, veja-se a miríade de notícias falsas, como por exemplo, a propaganda das guerras que decorrem neste momento em várias partes do mundo, o cidadão comum é cada vez mais manietado, manipulado, "lobotomizado", principalmente pelos meios de comunicação como as TVs.

Xenófanes, filósofo grego (c. de 570 AC - c. 460 AC) escreveu qualquer coisa como isto:

Os deuses não revelaram, no início,
todas as coisas para nós; com o correr do tempo, entretanto,
pela pesquisa, podemos saber mais acerca das coisas.
Contudo, a verdade certa, nenhum homem a conheceu,
nem chegará a conhecer, nem os deuses,
nem mesmo acerca das coisas que menciono.
Pois ainda que, por acaso, viesse a dizer
a verdade final, ele próprio não o saberia:
pois tudo não passa de teia urdida de pressupostos. (1)


A verdade não é um processo acabado, é sempre relação:  entre pessoas, entre palavras e coisas, entre pessoas e palavras, entre palavras e palavras.

Entre pessoas, como oposição a mentira; 
entre palavras e coisas, como correspondência entre elas; 
entre pessoas e palavras, como adequação do pensamento ao discurso; 
entre palavras sobre palavras, como metalinguagem. 
Pode ser a adequação entre o pensamento e a realidade.
A linguagem (palavra) é a realização, por excelência, dos humanos.
Pela linguagem os seres humanos, na sua singularidade e pluralidade, recriam-se, ampliam o seu grau de consciência individual e coletiva. Tornam-se cada vez mais humanos no seu desenvolvimento numa dimensão espácio-temporal, cultural, num fluir imparável e histórico.

Buscam a verdade o detetive, o juiz, o cientista, o teólogo, o artista, enfim, toda a gente. 
Esta procura confunde-se com a própria vida. 
A vida é emoção, sentimento e razão, descoberta de cada um por si próprio e dos outros por cada um, subjetiva e intersubjetiva, em busca da objetividade, da verdade.

Entre o ser humano e a verdade há um manto adiáfano dificultando o conhecimento e mantendo suficientes camadas de esquecimento que garantem a vida caracterizada como mundo em perpétuo movimento.




(1) in  Brian Magee, As Ideias de Popper,  Cultrix, Un. S. Paulo, 1984, p.30

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