Páginas

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Paisagem e Cultura

 

A palavra "cultura" refere, tal como afirma Blackburn, o modo de vida de um povo, com as suas atitudes, valores, crenças, artes, ciências, modos de perceção e hábitos de pensamento e de ação. É o conjunto dos modos de pensamento, comportamentos e produções materiais e espirituais transmitidos e aprendidos no decurso do processo de socialização. A cultura fornece os meios de adaptação do ser humano ao seu ambiente e desempenha um papel fundamental na unidade e diversidade da espécie humana. Onde há seres humanos há cultura, ela é o conjunto de todos os traços e produções específicos dos seres humanos de todas as latitudes do planeta Terra. É universal, na medida em que há cultura em qualquer espaço ou paisagem onde se encontrem membros da espécie humana, mas é também diversa, porque há uma infinidade de possibilidades dos seres humanos se organizarem para viverem em sociedade. É a cultura que define a humanidade. Não haveria humanidade sem cultura. Por isso tal como os seres humanos são diversos, também são diversas as culturas e em cada uma delas se pode divisar um conjunto de características comuns a todos os indivíduos que nelas participam e que define aquilo a que chamamos “padrão cultural”, isto é, maneira própria e tipificada de pensar, sentir e agir, específica de uma determinada cultura. A cultura é adquirida após o nascimento e transmite-se de geração em geração por meio da linguagem num processo complexo de socialização primária e secundária.

Poderemos perspetivar a cultura de diversas formas: do etnocentrismo ao relativismo. Não nos parece que a primeira, o etnocentrismo, seja no século XXI uma visão correta, já que aponta para  a ideia de que o povo a que se pertence, com as suas crenças, tradições e valores, é um modelo absoluto a que tudo o mais deve submeter-se. Não devemos defender imposições absolutistas nem sequer imposições de tipo nenhum, não faz parte do nosso léxico vivencial, tanto intencional como prático, qualquer forma de totalitarismo. Por isso, devemos entender a cultura numa perspetiva do relativismo, na medida em que reconhecemos que não há critérios universais e independentes de bem e de mal, de belo e de feio, mas não aceitamos um relativismo absoluto que tolere tudo.  Devemos ser tolerantes e compreensivos porque não podemos nem devemos condenar o que é diferente de nós só porque é diferente. A virtude da tolerância tem de pressupor limites e intolerância face aos intolerantes, torna necessária e impreterível a concretização prática dos direitos humanos universais. A cultura, seja em que contexto ambiental for, deve promover sempre o bem-estar humano em reciprocidade com o respeito pela natureza. Mas a cultura emerge sempre num contexto, em parte determinado pela paisagem herdada seja ela natural ou humanizada. Algumas questões que creio importantes e que se ligam ao espírito desta reflexão são:

- Que relação existe entre paisagem e cultura?

- Como poderemos agir para alterar essa relação, no caso de ela estar a ser incorreta?

Recordo uma das primeiras aulas de geografia quando frequentei o oitavo ano do ensino geral unificado, em finais dos anos setenta do século XX, a qual se iniciou com a definição de Geografia: a ciência que descreve e explica as paisagens naturais e humanizadas. E logo vieram as perguntas dos alunos, como é que sabemos o que é natural e o que é humanizado?

 No contexto europeu e português e mesmo mundial, quase não há paisagens absolutamente naturais no sentido de que não tiveram ainda qualquer intervenção ou influência humana. Os processos de industrialização, de urbanização e de vida dos seres humanos estão submetidos, há muito tempo, à globalização onde, com certeza, é provável o efeito borboleta. Tudo está ligado a tudo, a poluição numa parte do mundo influencia, por pouco que seja, todas as outras partes do mundo.

Podemos referir paisagem e cultura por um conceito de duas palavras: paisagem cultural. A UNESCO, através do Comité do Património Mundial colocou em destaque o conceito de paisagem cultural pelo seu reconhecimento enquanto categoria, mas a sua génese acontecera já no século XIX. A paisagem cultural é a paisagem criada pela cultura humana. De acordo com a visão determinista, a paisagem cultural é construída pelos seres humanos cujo comportamento obedece apenas a fatores de natureza ambiental.  Sabemos que não é assim, por exemplo, Franz Boas (1858-1942), um dos pioneiros da antropologia moderna, desenvolveu a ideia de paisagem cultural com a introdução do conceito de relativismo cultural, partindo do pressuposto de que cada povo/cultura se expressa ou se pode expressar de forma diferente em ambientes semelhantes. Podemos defender a importância da especificidade de cada cultura e de cada lugar para compreendermos as paisagens culturais, em contraste com a ideia de evolucionismo linear e unidirecional do desenvolvimento da humanidade. Daí que os fatores culturais de natureza não material, sejam muito importantes, mas não únicos, na perceção da transformação das paisagens. Para além das diferentes visões e entendimentos do que é a paisagem cultural, percebe-se, cada vez mais, que a paisagem tem uma história que é impreterível reconhecer, tem os seus próprios ritmos e temporalidade. Por isso uma das áreas atuais de pesquisa é a “biografia da paisagem”. 

O debate que importa fazer sobre as paisagens culturais é aquele que tem a ver com a preservação da identidade cultural e paisagística no contexto de mudanças que devem ser pensadas coletivamente no respeito pelos direitos humanos e pela preservação da biodiversidade com uma economia sustentável a longo prazo. Assistimos há alguns anos, por exemplo, em todo o Alentejo, a uma crise da paisagem que sofre devido ao êxodo rural e à perda demográfica, e desemboca numa perda progressiva do saber enraizado na cultura das comunidades que paulatinamente vão desaparecendo. Isto não é uma inevitabilidade, reconhecemos isso, e para tal aqui se faz algum caminho de reflexão que se impõe e que não pode esmorecer. 

O estudo das paisagens culturais deverá ser  feito no sentido de compreender a sua história e  cultura, de apreender a sua identidade e consequentemente melhorar a sua perceção; a leitura e interpretação das paisagens culturais são imprescindíveis para a sua correta gestão e  para uma boa intervenção, se necessária, tanto no presente como no futuro; as decisões que decorrerem do estudo, reflexão, análise e debate sobre as paisagens e a cultura deverão garantir a sobrevivência condigna das comunidades locais dos pontos de vista social, económico, cultural, ambiental e ecológico. Por conseguinte, nesta senda, vislumbra-se a necessidade humana de identidade cultural intrinsecamente ligada, não apenas a um sentimento de pertença a determinado grupo étnico, cultural, religioso, mas também à sua ligação profunda à terra, à paisagem. Veja-se, por exemplo, o cante alentejano como Hino e  Alma do Baixo Alentejo, como é mostrado pelo  mestre José Gato, a partir do cancioneiro de Serpa:

Alentejo, Alentejo

Eu sou devedor à terra, a terra me está devendo!

Eu sou devedor à terra, a terra me está devendo!

A terra paga-me em vida, eu pago à terr'(em) morrendo!

 A terra paga-me em vida, eu pago à terr'(em) morrendo!

 Alentejo, Alentejo! terra sagrada do pãão!

 Eu hei-de ir ao Alentejo, mesmo que seja no Verão.

 Ver o doirado do trigo na imensa solidão.

 Alentejo, Alentejo! terra sagrada do pãão!

 

https://www.youtube.com/watch?v=xxDz28Fhp-0

 

Devemos defender a preservação do património cultural pela recolha e manutenção de memórias vivas e dinâmicas, como o cante, por exemplo, porque pode potenciar formas interessantes e profícuas de desenvolvimento social, cultural e económico como o turismo cultural, na medida em que for compatível com a qualidade de vida dos locais e de quem os visita. Mas é igualmente necessário defender e preservar o património material edificado e classificado em todas as paisagens, sejam urbanas ou rurais. É desolador ver, como aconteceu recentemente, nos arredores de Évora, uma anta do período neolítico arrasada para plantação de um amendoal intensivo, património à mercê de interesses privados e do desleixo das entidades públicas. Inaceitável é também a invasão do olival intensivo junto às populações, pondo em causa a qualidade do ar que se respira, da água que se bebe,  do silêncio que se necessita e do horizonte visual tradicional tranquilo. Igualmente preocupante e inaceitável é a alteração da paisagem do montado alentejano, agora atacado e invadido por culturas intensivas, criando ilhas de sobreiros e azinheiras que, cercados, têm a morte anunciada, impossibilitando outras formas de economia tradicional sustentável, como a criação do porco alentejano à base de bolota.

Os exemplos aqui apontados mostram que há paisagens tradicionais, como o olival de sequeiro, e expressões culturais positivas que lhes estão associadas, ambas em risco, e que é possível alterar este estado de coisas. O olival tradicional, ao contrário do intensivo e super intensivo, preserva os aquíferos, não polui os solos nem o ar, não agride esteticamente, é um investimento de longo prazo, cria expetativas positivas  intergeracionais, desenvolve-se num tempo lento com um alto grau de previsibilidade, cria produtos de melhor qualidade, dá confiança às populações locais, permite, não o imobilismo, mas uma evolução paulatina que respeita os ecossistemas e as tradições populares pelas quais se mantêm dinâmicas culturais e  de comunicação que potenciam outras formas de desenvolvimento como o turismo cultural saudável, e um modo de viver mais feliz. Combater o olival e outras culturas intensivas e superintensivas é contribuir para uma vida melhor em Portugal e também para um planeta onde a vida humana e de outras espécies a curto, médio e longo prazo, seja possível. Significa colocar em simbiose, e não em oposição, as paisagens e as expressões culturais, gerando equilíbrios, numa dialética que visa uma sociedade mais igualitária, respeitando as diferenças, e por isso mais desenvolvida humanamente, uma sociedade livre da exploração do homem pelo homem e do interesse exclusivo daqueles que apenas almejam o lucro máximo no menor tempo possível.

Sem comentários:

Enviar um comentário