o que nós quisermos,
havendo juízo, querer é poder.
A luz dos teus olhos,
a clara macieza da tua pele,
o cintilar que emprestas
às estrelas que resplandecem
num brilho vivo,
são jogos de amor
que mostram a tua alma.
talvez nua,
em todo o seu fulgor.
Através da vidraça
antevejo a luz do dia
que ainda agora é uma criança.
Escuto a voz de um melro
circundando a vizinhança.
Anda na sua ronda matinal
seguro de que não há vento.
Por isso tem de voar,
de dar conta, de ramo em ramo,
de que tudo está bem,
levar as boas novas
a outros lugares
certo está
que por ele ninguém o fará.
Toca nas plantas circundantes
com o seu assobio assertivo
e assim confirma o lugar natural
de cada uma e dos insetos
seus vigilantes.
Encantados, outros pássaros
regressam a este lugar
de onde partiram
para voltarem a ser felizes
nos cantos em que os ninhos
cresceram e ao mundo se lançaram.
Enquanto isto,
na quietude de outono
na terra lêveda,
germinam os pinheiros
que às alturas se elevarão
para saciar a sede
de frescura do próximo verão.
Quando alguém trabalha
e produz cem ficando com vinte,
está claramente a ser roubado,
o seu trabalho foi alienado.
Quando alguém se apropria
do que não lhe pertence,
é autor de extorsão
sobre quem tudo dá
e quase nada recebe.
Quando alguém quer trabalhar
e desse direito é privado,
está a ser violentado,
desconsiderado e maltratado.
Quando alguém, por astúcia maldosa
e usurpação de poder, obriga o outro
a fazer o que não quer e o que não deve,
está simplesmente a colonizá-lo.
Quando alguém usa o insulto,
a mentira, a generalização abusiva
e a manipulação,
semeia sofrimento e violência,
leva o mundo à falência.
A ignorância efetiva
assemelha-se nos efeitos à maldade
e ataca a igualdade.
Enquanto ignorantes
do funcionamento do mundo
não sabemos o que é justo,
somos como insetos a espernear
de barriga para cima,
à mercê de todas as arbitrariedades.
A solidariedade não se encontra
dentro de uma caixinha de surpresas,
cultiva-se na vida, desde muito cedo,
criando laços,
promovendo beijos e abraços,
nasce na pátria da fraternidade
onde cada homem, cada mulher,
cada criança,
em qualquer idade,
respira o ar puro da confiança
e em liberdade, há-de ser o que quiser.
A minha casa,
a minha rua,
a minha escola,
a minha terra,
o meu país,
o meu mundo,
as minhas memórias.
Nada disto é verdadeiro.
A casa não é minha,
nem a rua, nem a terra,
nem a escola, nem o país,
nem o mundo,
nem as memórias.
Quando muito sou da casa,
sou da rua, sou da terra, sou da escola,
do país e das memórias.
Engana-se quem diz,
o mundo é nosso.
Engana-se ainda mais quem diz,
o mundo é meu.
A verdade é que nós é que somos
do mundo enquanto o mundo nos quiser.
Já é mau ouvir dizer, o mundo é nosso,
pior ainda é haver quem diga,
o mundo é meu.
Ponha-se termo, em nome da paz,
à falta de humildade,
e haverá humanidade.
Alguns dos que foram
nossos amigos e conhecidos
já não crescem,
já não envelhecem,
simplesmente não estão cá.
A morte negou-lhes
todas as possibilidades.
Um ou outro talvez acreditasse
numa outra vida no além
ou num universo paralelo.
Essa fé não muda em nada
o facto de que já não existem,
são memórias que se podem
desvanecer como traços de tinta
em papel envelhecido.
Ninguém está fora
da lei da morte,
nem mesmo o próprio universo.
Só nos resta o aqui e agora,
dia após dia
com a emoção
que nos oferece
a energia vital,
o encantamento
e a alegria
para nos fazer sentir
que o dia que passou
é obra de arte inacabada.
Sonhei com o melhor
elevador do mundo,
as escadas que levam
do rés-do-chão ao sótão
tudo o que é importante levar,
detergentes para a roupa,
peças de vestuário,
livros, quadros, malas;
funciona com pés e mãos,
cuidado e amor.
Veio-me à ideia, de seguida,
um elevador improvável,
o de Sísifo, que transportava,
montanha acima, a enorme rocha
que lhe cabia em castigo,
poupando-o a trabalhos
e dores (in)suportáveis.
Ato contínuo recordo
outros elevadores,
do Bom Jesus, da Glória,
de Santa Justa, da Bica, da Lavra.
Nisto oiço um comentador
a falar do elevador social,
uma invenção moderna,
segundo alguns a solução
para os males da sociedade.
Então diz-se à criança,
filho, queres ser alguém na vida?
Vais à esquina da rua da liberdade,
esforças-te ao máximo,
obedeces a todas as ordens,
cumpres todas as regras
sem pisar o risco,
sem sair da linha,
direitinho que nem um fuso.
Assim serias alguém,
como se não tivesses direitos
e deveres, nem fosses
solidário, autónomo e belo
como é natural,
mas um humano sem qualidades.
Numa aula de moral e religião,
há muitos anos,
um amigo meu, de doze anos,
respondeu ao padre,
depois de este ter dito
que a confissão nos deixa
a alma mais limpa:
pudera, é como o OMO,
lava tudo mais branco.
O presbítero chamou-o,
deu-lhe duas fortes bofetadas
à frente da turma
e mandou-o para a rua
de castigo, em penitência.
Estranhei muito o sucedido
e não me resignei, fiquei
revoltado com a situação
do meu amigo.
Esta memória ocorreu-me
a propósito de sentir
que vivemos num mundo
onde há muita sujidade
e um evidente, constante
e excessivo apelo à higiene.
Há quem derrube árvores
porque acha que sujam muito
as ruas e os quintais,
quem espalhe cartazes
com cruzes sobre o retrato
de quem é para eliminar
dizendo que é preciso
fazer uma limpeza.
Há também quem decida
e pratique o genocídio
como se fosseu um ato de higienização
do mundo.
A comunicação social dominada
é também expressão deste estado
de coisas, trata uns como pessoas
muito importantes e outros
como se fossem insetos
incómodos e insignificantes,
numa lógica de lavagem ao cérebro
para gáudio de uns quantos
gananciosos que se autointitulam
com o direito divino
de serem os donos do mundo.
Há sem dúvida
higiene e limpeza a mais.
Por isso aqui fica
um apelo à compreensão da sujidade
e ao lançamento de uma campanha
mundial para erguer uma estátua
de homenagem ao poema sujo.
Foto: desenho de Emília Nadal, 1976, exposto no Museu Soares dos Reis, Porto, 28 de julho de 2024
Aprendi no oitavo ano
de escolaridade, em geografia,
que o vento
é o movimento do ar
das altas para as baixas pressões.
O tempo passou
e décadas depois
aquela definição continua verdadeira,
mas o vento que oiço, que sinto
e que não vejo, mostra-se
nos seus uivos de outra maneira,
há outra verdade no sentimento
do vento.
Pergunto-lhe se há esperança
para o mundo ser mais verde
e ele nada me diz sobre a mudança.
Por isso vou andar por aí
à procura de outros ventos
que nos tragam outros tempos
que nos livrem das mordaças
e nos libertem das desgraças.
Diz-se que o tempo
nos devora como Cronos
devorava os filhos.
Mesmo assim
somos mais fortes do que ele:
muitos dias já se foram
e nós cá continuamos.
Não devoramos os filhos,
não somos canibais.
Eles é que parecem,
por vezes, querer-nos devorar
como bebés sôfregos
a beber o leite dos seios das mães.
Não os levamos a mal por isso,
são o futuro,
vida para além do agora.
O presente, maior do que tudo
o que se pode imaginar,
é sentir a vida como quando
se lê o poema pela primeira vez,
como a força do choro
do recém-nascido
que ecoa nos vórtices da vida.
O presente é cumprir,
como Aristóteles dizia,
a causa final da humanidade,
tão só a felicidade.
O presidente diz,
"Vejo com bons olhos a abertura
dos partidos ao diálogo com tempo."
O presidente egocêntrico, fala de si
próprio e diz que tem bons olhos.
Considera-se visionário,
vê a abertura dos partidos,
que eventualmente,
mais ninguém vê.
O diálogo vem lá e entra nos partidos
através de uma brecha.
O presidente diz
que o diálogo tem tempo,
como se pudesse haver
diálogo sem tempo.
Diz que o orçamento
deve trazer estabilidade ao país.
Um orçamento com dois pratos
e um ponteiro a servir de fiel,
para dar equilíbrio ao país,
firme e hirto como uma barra de ferro.
Temos um presidente
tão arguto, tão bom,
tão inteligentesinho.
Tudo está em tudo
como dizia o velho Anaxágoras
de Clazómenas.
Foi dos primeiros a duvidar
de que o Sol era um deus
e de que a Lua era uma deusa.
O Sol seria mais como uma pedra quente
e a Lua como uma terra
que avistamos ao longe.
Por isso foi preso e castigado.
Ontem, ao passear em boa companhia
nas ruínas de Ammaia,
senti o calor da pedra vermelha
de Anaxágoras enquanto
viajava ao passado
de há dois mil anos.
À noite avistei a Lua,
a partir do quintal
da casa onde moro
e vi nela uma terra distante.
Viajei ainda mais
quinhentos anos para trás.
Foi um dia maravilhoso,
descobri, tal como Anaxágoras,
que podemos estar a ver e a sentir
tudo em todo o lado.
Os trevos de quatro folhas
dão sorte.
Há quem acredite nisso
e não tem mal nenhum.
Os trevos de quatro folhas
do quintal da casa onde moro
cativam-me de tal modo
que estou seguro de que lhes pertenço.
São verdes e mostram flores
de cinco pétalas cor de rosa
com estiletes amarelos.
Não creio, por maioria de razão,
que dão mesmo sorte.
Tenho-os na vista
quando estou ao pé deles,
e no pensamento
quando vou para o trabalho.
Faço de conta que acredito
(que dão sorte)
para corresponder ao seu apelo
e justificar a nossa relação.
Sinto a estranheza
de que vivo como se acreditasse
(que dão mesmo sorte)
e isto faz-me bem ao coração.
Tenho mesmo sorte.
Tenho muita sorte.
Num sonho maduro,
em que há uma luz bruxuleante
a iluminar a alma e a dar
alegria ao coração,
irrompem as tuas mãos
na madrugada sem fronteiras,
desgranando romãs vivas
na mesa onde nos sentamos
para partilhar os despojos do dia.
O tempo bravio não dá tréguas,
o vento suão desafia a resistência,
e esta nossa força,
mesmo cansada,
vence a secura agreste
que nos quis tisnar a pele.
Continuamos a regar as plantas,
a olhar para elas,
a vê-las a crescer e a sorrir
assertivamente, na sua luta
que é também a nossa.
Por isso elas cuidam de nós
e nós delas, sempre e sempre,
como é natural, até ao merecido
momento em que as mãos se dão.
Olho em volta e vejo tantos objetos.
Que não uso, pouco usei, não usarei.
Tanto CD, tanto DVD, tanta cassete.
Tanta camisola, tanta meia, tanto casaco.
Tanto brinquedo, tanto plástico.
Tudo isto veio de algum lado.
Tudo isto foi fabricado.
Quem sabe com sangue, suor e lágrimas.
De certeza, com lucro fácil e abundante para alguns.
Com materiais arrancados às entranhas das montanhas,
dos vales, das planícies, dos rios e dos mares,
delapidando a saúde da Terra Mãe.
Para quê tanta tralha?
Afinal só preciso de amor, pão, água e abrigo.
Tudo o mais é supérfluo.