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quarta-feira, 8 de junho de 2016

peixe

Lindo dia, brilha o sol, os telhados das casas refletem toda a luz e a energia implacável que nos alimenta prolonga mais e mais a nossa vida. Acordei às quatro da manhã. Saí do casulo e enquanto olhava para as estrelas já mal visíveis, ocorreu-me perguntar, que raio faço eu aqui, não deveria estar a dormir ou será que estou a sonhar e sou mesmo sonâmbulo? Mas o que sou ou quem sou para me arrogar o direito de duvidar de tudo e de mim mesmo? A vida é isto, ato contínuo de perguntas e respostas que germinam perguntas numa carreira sem fim. Os meus ossos já evidenciam algumas artroses, a minha coluna está torta, os meus olhos veem cada vez mais nevoeiro, a minha memória, mais lenta, já não me permite recordar os nomes de certas pessoas, até mesmo de alguns escritores de que gosto. Se assim é, o que sou eu senão um corpo em deterioração à espera do fim? 
Há quem acredite na mente, último resquício da alma, como se todos os pensamentos e sentimentos fossem espirituais ou imateriais. Quando jovenzinho dava por mim a pensar sobre o pensamento e para onde iria ele depois da morte, como se o pensamento não morresse e consistisse numa coisa etérea e infinita. Agora creio apenas num certo esforço que o corpo oferece a si para tentar compreender-se, para aumentar um pouco as probabilidades de sobrevivência ou reduzir as potencialidades do sofrimento. Como um corpo não pode viver ou sobreviver sozinho, terá necessariamente de se relacionar com outros corpos de variadíssimas maneiras, respeitando de certa forma a proxémia biológica, social e amorosa. Sou um peixe de aquário embatendo contra a parede de vidro, os meus lábios encontram a realidade, resistência pela qual reconheço a minha finitude, as incomensuráveis limitações do meu universo. Dou conta de outros que me parecem peixes e num ato instintivo roço nas suas as minhas barbatanas, alguns sacodem-nas como se tivesse sarna, outros agradecem o gesto pelo hábito e até me convidam para beber um copo ou saborear uma taça de chocolate sabendo de antemão que o agente duplo que sou  se resigna perante as novidades talvez desejadas. Vou perdendo as escamas como as borboletas em fuga por entre os cardos. Sou um animal ambíguo, encontro no ecrã do mundo as cores do arco da velha do meu cérebro, o pote de ouro inalcançável, e ainda bem, sabendo nós o exemplo do rei Midas. Sou todo palavras e nada mais que isso, palavras são corpos a vibrar, olhares, trejeitos, danças, cerejas como as conversas.

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