domingo, 27 de outubro de 2024
Luz e sombra
A luz
A luz dos teus olhos,
a clara macieza da tua pele,
o cintilar que emprestas
às estrelas que resplandecem
num brilho vivo,
são jogos de amor
que mostram a tua alma.
talvez nua,
em todo o seu fulgor.
domingo, 20 de outubro de 2024
Manhã
Através da vidraça
antevejo a luz do dia
que ainda agora é uma criança.
Escuto a voz de um melro
circundando a vizinhança.
Anda na sua ronda matinal
seguro de que não há vento.
Por isso tem de voar,
de dar conta, de ramo em ramo,
de que tudo está bem,
levar as boas novas
a outros lugares
certo está
que por ele ninguém o fará.
Toca nas plantas circundantes
com o seu assobio assertivo
e assim confirma o lugar natural
de cada uma e dos insetos
seus vigilantes.
Encantados, outros pássaros
regressam a este lugar
de onde partiram
para voltarem a ser felizes
nos cantos em que os ninhos
cresceram e ao mundo se lançaram.
Enquanto isto,
na quietude de outono
na terra lêveda,
germinam os pinheiros
que às alturas se elevarão
para saciar a sede
de frescura do próximo verão.
sábado, 12 de outubro de 2024
Des/humanidade
Quando alguém trabalha
e produz cem ficando com vinte,
está claramente a ser roubado,
o seu trabalho foi alienado.
Quando alguém se apropria
do que não lhe pertence,
é autor de extorsão
sobre quem tudo dá
e quase nada recebe.
Quando alguém quer trabalhar
e desse direito é privado,
está a ser violentado,
desconsiderado e maltratado.
Quando alguém, por astúcia maldosa
e usurpação de poder, obriga o outro
a fazer o que não quer e o que não deve,
está simplesmente a colonizá-lo.
Quando alguém usa o insulto,
a mentira, a generalização abusiva
e a manipulação,
semeia sofrimento e violência,
leva o mundo à falência.
A ignorância efetiva
assemelha-se nos efeitos à maldade
e ataca a igualdade.
Enquanto ignorantes
do funcionamento do mundo
não sabemos o que é justo,
somos como insetos a espernear
de barriga para cima,
à mercê de todas as arbitrariedades.
A solidariedade não se encontra
dentro de uma caixinha de surpresas,
cultiva-se na vida, desde muito cedo,
criando laços,
promovendo beijos e abraços,
nasce na pátria da fraternidade
onde cada homem, cada mulher,
cada criança,
em qualquer idade,
respira o ar puro da confiança
e em liberdade, há-de ser o que quiser.
terça-feira, 1 de outubro de 2024
O rabo da lagartixa
seja lá isso o que for,
durante muito tempo,
através dos seus doutos representantes,
convencida estava
de ter sido criada à imagem
e semelhança dos deuses.
Seria a espécie mais importante
de todas e, como se isso não bastasse,
habitaria no centro do universo
num planeta redondo
onde seria senhora de tudo,
Primeira ferida:
afirmou que a Terra e o Homem
não são o centro do Universo.
Segunda Ferida:
semelhante aos outros animais.
Terceira ferida:
descobriu que o ser humano
não controla os seus afetos,
medos, impulsos e desejos,
porque afetado pelo inconsciente.
Conclusão:
Não sou mais importante
do que nada que exista ou possa existir,
não sou centro de coisa nenhuma,
não sou absolutamente racional,
não tenho nada de imortal,
não me controlo inteiramente.
Então quem sou eu?
Sou afetos, desejos e emoções,
que vivem num corpo em mutação,
agitado por todos os ventos
em todas as escalas.
Afetado por todas as marés,
por todos os efeitos de todas as borboletas,
pelas primaveras de Vivalvi e de Stravinski,
por todas as paisagens e nuvens
de óleos e aguarelas,
expressionismos, góticos,
cubistas, surrealistas e minimalistas.
à procura do nada que é tudo,
em busca do tudo que é nada,
fugindo, como a lagartixa,
de quem lhe corta o rabo,
fruindo a vida que floresce mesmo
nos tempos e lugares mais improváveis,