Páginas

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Poema Sujo

Numa aula de moral e religião,

há muitos anos,

um amigo meu, de doze anos,

respondeu ao padre, 

depois de este ter dito 

que a confissão nos deixa

a alma mais limpa:

pudera, é como o OMO, 

lava tudo mais branco.

O presbítero chamou-o, 

deu-lhe duas fortes bofetadas

à frente da turma 

e mandou-o para a rua

de castigo, em penitência.

Estranhei muito o sucedido

e não me resignei, fiquei

revoltado com a situação

do meu amigo.

Esta memória ocorreu-me

a propósito de sentir

que vivemos num mundo

onde há muita sujidade

e um evidente, constante 

e excessivo apelo à higiene.

Há quem derrube árvores

porque acha que sujam muito 

as ruas e os quintais,

quem espalhe cartazes 

com cruzes sobre o retrato

de quem é para eliminar

dizendo que é preciso

fazer uma limpeza.

Há também quem decida 

e pratique o genocídio 

como se fosseu um ato de higienização 

do mundo.

A comunicação social dominada

é também expressão deste estado 

de coisas, trata uns como pessoas

muito importantes e outros

como se fossem insetos 

incómodos e insignificantes,

numa lógica de lavagem ao cérebro

para gáudio de uns quantos

gananciosos que se autointitulam

com o direito divino 

de serem os donos do mundo. 

Há sem dúvida 

higiene e limpeza a mais.

Por isso aqui fica 

um apelo à compreensão da sujidade

e ao lançamento de uma campanha

mundial para erguer uma estátua

de homenagem ao poema sujo.



Foto: desenho de Emília Nadal, 1976, exposto no Museu Soares dos Reis, Porto, 28 de julho de 2024








Sem comentários:

Enviar um comentário