A palavra "cultura" refere, tal como afirma Blackburn, o modo de vida de um povo, com as suas
atitudes, valores, crenças, artes, ciências, modos de perceção e hábitos de
pensamento e de ação. É o conjunto dos modos de pensamento,
comportamentos e produções materiais e espirituais transmitidos e aprendidos no
decurso do processo de socialização. A cultura fornece os meios de adaptação do
ser humano ao seu ambiente e desempenha um papel fundamental na unidade e
diversidade da espécie humana. Onde há seres humanos há cultura, ela é o
conjunto de todos os traços e produções específicos dos seres humanos de todas
as latitudes do planeta Terra. É universal, na medida em que há cultura em qualquer
espaço ou paisagem onde se encontrem membros da espécie humana, mas é também
diversa, porque há uma infinidade de possibilidades dos seres humanos se
organizarem para viverem em sociedade. É a cultura que define a humanidade. Não
haveria humanidade sem cultura. Por isso tal como os seres humanos são
diversos, também são diversas as culturas e em cada uma delas se pode divisar
um conjunto de características comuns a todos os indivíduos que nelas
participam e que define aquilo a que chamamos “padrão cultural”, isto é, maneira
própria e tipificada de pensar, sentir e agir, específica de uma determinada
cultura. A cultura é adquirida após o nascimento e transmite-se de geração em
geração por meio da linguagem num processo complexo de socialização primária e
secundária.
Poderemos perspetivar a
cultura de diversas formas: do etnocentrismo ao relativismo. Não nos parece que
a primeira, o etnocentrismo, seja no século XXI uma visão correta, já que
aponta para a ideia de que o povo a que
se pertence, com as suas crenças, tradições e valores, é um modelo absoluto a
que tudo o mais deve submeter-se. Não devemos defender imposições absolutistas
nem sequer imposições de tipo nenhum, não faz parte do nosso léxico vivencial,
tanto intencional como prático, qualquer forma de totalitarismo. Por isso, devemos
entender a cultura numa perspetiva do relativismo, na medida em que reconhecemos
que não há critérios universais e independentes de bem e de mal, de belo e de
feio, mas não aceitamos um relativismo absoluto que tolere tudo. Devemos ser tolerantes e compreensivos porque
não podemos nem devemos condenar o que é diferente de nós só porque é
diferente. A virtude da tolerância tem de pressupor limites e intolerância face
aos intolerantes, torna necessária e impreterível a concretização prática dos
direitos humanos universais. A cultura, seja em que contexto ambiental for,
deve promover sempre o bem-estar humano em reciprocidade com o respeito pela
natureza. Mas a cultura emerge sempre num contexto, em parte determinado
pela paisagem herdada seja ela natural ou humanizada. Algumas questões que
creio importantes e que se ligam ao espírito desta reflexão são:
- Que relação existe entre
paisagem e cultura?
- Como poderemos agir para
alterar essa relação, no caso de ela estar a ser incorreta?
Recordo uma das primeiras
aulas de geografia quando frequentei o oitavo ano do ensino geral unificado, em
finais dos anos setenta do século XX, a qual se iniciou com a definição de
Geografia: a ciência que descreve e explica as paisagens naturais e
humanizadas. E logo vieram as perguntas dos alunos, como é que sabemos o que é
natural e o que é humanizado?
No contexto europeu e português e mesmo mundial,
quase não há paisagens absolutamente naturais no sentido de que não tiveram
ainda qualquer intervenção ou influência humana. Os processos de
industrialização, de urbanização e de vida dos seres humanos estão submetidos,
há muito tempo, à globalização onde, com certeza, é provável o efeito
borboleta. Tudo está ligado a tudo, a poluição numa parte do mundo influencia,
por pouco que seja, todas as outras partes do mundo.
Podemos referir paisagem e
cultura por um conceito de duas palavras: paisagem cultural. A UNESCO,
através do Comité do Património Mundial colocou em destaque o conceito de
paisagem cultural pelo seu reconhecimento enquanto categoria, mas a sua génese
acontecera já no século XIX. A paisagem cultural é a paisagem criada pela
cultura humana. De acordo com a visão determinista, a paisagem cultural é construída
pelos seres humanos cujo comportamento obedece apenas a fatores de natureza
ambiental. Sabemos que não é assim,
por exemplo, Franz Boas (1858-1942), um dos pioneiros da antropologia moderna,
desenvolveu a ideia de paisagem cultural com a introdução do conceito de
relativismo cultural, partindo do pressuposto de que cada povo/cultura se
expressa ou se pode expressar de forma diferente em ambientes semelhantes.
Podemos defender a importância da especificidade de cada cultura e de
cada lugar para compreendermos as paisagens culturais, em contraste com a ideia
de evolucionismo linear e unidirecional do desenvolvimento da humanidade. Daí
que os fatores culturais de natureza não material, sejam muito importantes, mas
não únicos, na perceção da transformação das paisagens. Para além das
diferentes visões e entendimentos do que é a paisagem cultural, percebe-se,
cada vez mais, que a paisagem tem uma história que é impreterível reconhecer,
tem os seus próprios ritmos e temporalidade. Por isso uma das áreas atuais de
pesquisa é a “biografia da paisagem”.
O debate que importa fazer sobre as
paisagens culturais é aquele que tem a ver com a preservação da identidade
cultural e paisagística no contexto de mudanças que devem ser pensadas
coletivamente no respeito pelos direitos humanos e pela preservação da
biodiversidade com uma economia sustentável a longo prazo. Assistimos
há alguns anos, por exemplo, em todo o Alentejo, a uma crise da paisagem que
sofre devido ao êxodo rural e à perda demográfica, e desemboca numa perda
progressiva do saber enraizado na cultura das comunidades que paulatinamente
vão desaparecendo. Isto não é uma inevitabilidade, reconhecemos isso, e
para tal aqui se faz algum caminho de reflexão que se impõe e que não pode
esmorecer.
O estudo das paisagens culturais deverá ser feito no sentido de compreender a sua
história e cultura, de apreender a sua
identidade e consequentemente melhorar a sua perceção; a leitura e
interpretação das paisagens culturais são imprescindíveis para a sua correta
gestão e para uma boa intervenção, se
necessária, tanto no presente como no futuro; as decisões que decorrerem do
estudo, reflexão, análise e debate sobre as paisagens e a cultura deverão
garantir a sobrevivência condigna das comunidades locais dos pontos de vista
social, económico, cultural, ambiental e ecológico. Por conseguinte, nesta
senda, vislumbra-se a necessidade humana de identidade cultural intrinsecamente
ligada, não apenas a um sentimento de pertença a determinado grupo étnico,
cultural, religioso, mas também à sua ligação profunda à terra, à paisagem. Veja-se, por exemplo, o cante alentejano como Hino e
Alma do Baixo Alentejo, como é mostrado pelo mestre José Gato,
a partir do cancioneiro de Serpa:
Alentejo, Alentejo
Eu sou devedor à terra,
a terra me está devendo!
Eu sou devedor à terra,
a terra me está devendo!
A terra paga-me em vida, eu pago à terr'(em) morrendo!
A terra paga-me em vida, eu pago à terr'(em) morrendo!
Alentejo, Alentejo! terra sagrada do pãão!
Eu hei-de ir ao Alentejo, mesmo que seja no Verão.
Ver o doirado do trigo na imensa solidão.
Alentejo, Alentejo! terra sagrada do pãão!
https://www.youtube.com/watch?v=xxDz28Fhp-0
Devemos defender a preservação do
património cultural pela recolha e manutenção de memórias vivas e dinâmicas,
como o cante, por exemplo, porque pode potenciar formas interessantes e
profícuas de desenvolvimento social, cultural e económico como o turismo
cultural, na medida em que for compatível com a qualidade de vida dos locais e
de quem os visita. Mas é igualmente necessário defender e preservar o
património material edificado e classificado em todas as paisagens, sejam
urbanas ou rurais. É desolador ver, como aconteceu recentemente, nos arredores de Évora, uma anta do período neolítico
arrasada para plantação de um amendoal intensivo, património à mercê de interesses privados e do
desleixo das entidades públicas. Inaceitável é também a invasão do olival intensivo junto às populações, pondo
em causa a qualidade do ar que se respira, da água que se bebe, do silêncio que se necessita e do horizonte
visual tradicional tranquilo. Igualmente preocupante
e inaceitável é a alteração da paisagem do montado alentejano, agora atacado e
invadido por culturas intensivas, criando ilhas de sobreiros e azinheiras que, cercados, têm a morte anunciada, impossibilitando outras formas de
economia tradicional sustentável, como a criação do porco alentejano à base de
bolota.
Os exemplos aqui apontados mostram que há paisagens tradicionais, como o olival de sequeiro, e expressões culturais
positivas que lhes estão associadas, ambas em risco, e que é possível alterar este
estado de coisas. O olival tradicional, ao contrário do intensivo e super intensivo, preserva os
aquíferos, não polui os solos nem o ar, não agride esteticamente, é um
investimento de longo prazo, cria expetativas positivas intergeracionais, desenvolve-se num tempo lento
com um alto grau de previsibilidade, cria produtos de melhor qualidade, dá
confiança às populações locais, permite, não o imobilismo, mas uma evolução
paulatina que respeita os ecossistemas e as tradições populares pelas quais se
mantêm dinâmicas culturais e de
comunicação que potenciam outras formas de desenvolvimento como o turismo
cultural saudável, e um modo de viver mais feliz. Combater
o olival e outras culturas intensivas e superintensivas é contribuir
para uma vida melhor em Portugal e também para um planeta onde a vida
humana e de outras espécies a curto, médio e longo prazo, seja possível.
Significa colocar em simbiose, e não em oposição, as paisagens e as expressões
culturais, gerando equilíbrios, numa dialética que visa uma sociedade mais
igualitária, respeitando as diferenças, e por isso mais
desenvolvida humanamente, uma sociedade livre da exploração do homem pelo homem
e do interesse exclusivo daqueles que apenas almejam o lucro máximo no menor
tempo possível.