Quantas vezes percorres
os caminhos do meu pensamento?
Nem sei, já lhes perdi o conto, pai.
Passeias comigo tantas horas,
tantos dias, nas mais vívidas memórias.
Tens sido a minha âncora em muitos momentos,
principalmente nos mais espinhosos,
naqueles dias penosos em que o sol não nasce,
naquelas noites em que a lua chora de saudade
por já teres partido,
aqueles das angústias existenciais:
sou ou não sou, faço ou não faço,
quero ou não quero?
Naqueles dias de tempestade
à procura do porto de abrigo,
estás sempre comigo.
Como é simples, na tua companhia,
resolver as dores da alma
quando, na maior das agruras,
perdido no oceano das dúvidas,
pergunto: o que farias, pai,
se estivesses aqui e agora no meu lugar?
Conhecias-me a mim e aos manos,
mais do que ninguém,
assim como o grande amor da tua vida,
a minha mãe.
Tentei, enquanto jovem,
compreender os teus preceitos,
as tuas forças, a razão do teu viver,
a intenção dos teus projetos.
Deixaste-nos demasiado cedo,
tinha ainda tantas perguntas para te fazer,
contudo não te foste embora,
vives comigo a toda a hora,
afinal sou uma bocadinho do teu futuro,
um reflexo da tua estrela,
procuro transportar no meu corpo
a ternura dos teus gestos
e respeitar o teu lugar à nossa mesa.
Descobri contigo, na tua célere passagem,
o valor dos mistérios insondáveis da vida,
a veemência no cuidar de quem precisa,
o respeito pela natureza,
o sentido de estarmos aqui, uns com os outros,
aprendendo a viver juntos,
combatendo a melancolia, construindo alegria.
Ensinaste-me o maior preceito
que alguém pode desejar aprender:
não desistir de nada do que é essencial e verdadeiro,
fruir a vida com o propósito de contribuir
para a maior riqueza e felicidade do mundo.
Muitas sementes lançaste à terra,
imensas árvores plantaste,
com carinho, dos animais cuidaste.
Calcorreaste os campos, lavraste muita terra,
regaste muitas plantas, colheste tantos frutos.
Respeitaste os amigos, a família e os demais,
com uma verdade tão simples
como a das nuvens ao serem apenas as nuvens do céu.
O Deus em que acreditavas,
sumamente bom, compreensivo,
misericordioso, motor de toda a justiça,
fundamento de toda a existência
e de toda sabedoria, dava-te a força
e o norte para segurares o leme da vida
no sossego da alma
que te permitia sonhar e cantar.
Como ecoa ainda a tua voz de barítono
no canto espontâneo de esperança
na capela da aldeia onde cresci
e onde iniciei os meus sonhos:
"eu sonho que a minha gente
será semente da eterna paz".
Procurarei, como me diz o sentido,
e na senda do teu querer,
sempre e em toda a parte,
meu querido Pai, continuar-te.