música do corpo que dança
e respira como as raízes
no feliz deslumbramento
Durmo na inconsciência do nada,
encontro as mãos,
do jogo da luz e das sombras
sempre incompletas, melodias
de abelhas melífluas e libélulas
como valquírias em cavalgadas.
Sonhei com o melhor
elevador do mundo,
as escadas que levam
do rés-do-chão ao sótão
tudo o que é importante levar,
detergentes para a roupa,
peças de vestuário,
livros, quadros, malas;
funciona com pés e mãos,
cuidado e amor.
Veio-me à ideia, de seguida,
um elevador improvável,
o de Sísifo, que transportava,
montanha acima, a enorme rocha
que lhe cabia em castigo,
poupando-o a trabalhos
e dores (in)suportáveis.
Ato contínuo recordo
outros elevadores,
do Bom Jesus, da Glória,
de Santa Justa, da Bica, da Lavra.
Nisto oiço um comentador
a falar do elevador social,
uma invenção moderna,
segundo alguns a solução
para os males da sociedade.
Então diz-se à criança,
filho, queres ser alguém na vida?
Vais à esquina da rua da liberdade,
esforças-te ao máximo,
obedeces a todas as ordens,
cumpres todas as regras
sem pisar o risco,
sem sair da linha,
direitinho que nem um fuso.
Assim serias alguém,
como se não tivesses direitos
e deveres, nem fosses
solidário, autónomo e belo
como é natural,
mas um humano sem qualidades.
Numa aula de moral e religião,
há muitos anos,
um amigo meu, de doze anos,
respondeu ao padre,
depois de este ter dito
que a confissão nos deixa
a alma mais limpa:
pudera, é como o OMO,
lava tudo mais branco.
O presbítero chamou-o,
deu-lhe duas fortes bofetadas
à frente da turma
e mandou-o para a rua
de castigo, em penitência.
Estranhei muito o sucedido
e não me resignei, fiquei
revoltado com a situação
do meu amigo.
Esta memória ocorreu-me
a propósito de sentir
que vivemos num mundo
onde há muita sujidade
e um evidente, constante
e excessivo apelo à higiene.
Há quem derrube árvores
porque acha que sujam muito
as ruas e os quintais,
quem espalhe cartazes
com cruzes sobre o retrato
de quem é para eliminar
dizendo que é preciso
fazer uma limpeza.
Há também quem decida
e pratique o genocídio
como se fosseu um ato de higienização
do mundo.
A comunicação social dominada
é também expressão deste estado
de coisas, trata uns como pessoas
muito importantes e outros
como se fossem insetos
incómodos e insignificantes,
numa lógica de lavagem ao cérebro
para gáudio de uns quantos
gananciosos que se autointitulam
com o direito divino
de serem os donos do mundo.
Há sem dúvida
higiene e limpeza a mais.
Por isso aqui fica
um apelo à compreensão da sujidade
e ao lançamento de uma campanha
mundial para erguer uma estátua
de homenagem ao poema sujo.
Foto: desenho de Emília Nadal, 1976, exposto no Museu Soares dos Reis, Porto, 28 de julho de 2024
Aprendi no oitavo ano
de escolaridade, em geografia,
que o vento
é o movimento do ar
das altas para as baixas pressões.
O tempo passou
e décadas depois
aquela definição continua verdadeira,
mas o vento que oiço, que sinto
e que não vejo, mostra-se
nos seus uivos de outra maneira,
há outra verdade no sentimento
do vento.
Pergunto-lhe se há esperança
para o mundo ser mais verde
e ele nada me diz sobre a mudança.
Por isso vou andar por aí
à procura de outros ventos
que nos tragam outros tempos
que nos livrem das mordaças
e nos libertem das desgraças.