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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Morada

Em ti mora o luar 
e a voz da terra,
música do corpo que dança
e respira como as raízes 
das profundezas
no feliz deslumbramento 
de sonhar acordado.
Durmo na inconsciência do nada,
encontro as mãos, 
prolongamentos
do jogo da luz e das sombras
sempre incompletas, melodias
de abelhas melífluas e libélulas 
como valquírias em cavalgadas.


quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Elevador

Sonhei com o melhor 

elevador do mundo,

as escadas que levam 

do rés-do-chão ao sótão

tudo o que é importante levar,

detergentes para a roupa,

peças de vestuário, 

livros, quadros, malas;

funciona com pés e mãos,

cuidado e amor.

Veio-me à ideia, de seguida,

um elevador improvável,

o de Sísifo, que transportava, 

montanha acima, a enorme rocha 

que lhe cabia em castigo, 

poupando-o a trabalhos 

e dores (in)suportáveis.

Ato contínuo recordo 

outros elevadores,

do Bom Jesus, da Glória, 

de Santa Justa, da Bica, da Lavra.

Nisto oiço um comentador

a falar do elevador social, 

uma invenção moderna,

segundo alguns a solução 

para os males da sociedade.

Então diz-se à criança,

filho, queres ser alguém na vida?

Vais à esquina da rua da liberdade,

esforças-te ao máximo,

obedeces a todas as ordens,

cumpres todas as regras

sem pisar o risco, 

sem sair da linha,

direitinho que nem um fuso.

Assim serias alguém,

como se não  tivesses direitos

e deveres,  nem fosses

solidário, autónomo e belo

como é natural, 

mas um humano sem qualidades.






quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Poema Sujo

Numa aula de moral e religião,

há muitos anos,

um amigo meu, de doze anos,

respondeu ao padre, 

depois de este ter dito 

que a confissão nos deixa

a alma mais limpa:

pudera, é como o OMO, 

lava tudo mais branco.

O presbítero chamou-o, 

deu-lhe duas fortes bofetadas

à frente da turma 

e mandou-o para a rua

de castigo, em penitência.

Estranhei muito o sucedido

e não me resignei, fiquei

revoltado com a situação

do meu amigo.

Esta memória ocorreu-me

a propósito de sentir

que vivemos num mundo

onde há muita sujidade

e um evidente, constante 

e excessivo apelo à higiene.

Há quem derrube árvores

porque acha que sujam muito 

as ruas e os quintais,

quem espalhe cartazes 

com cruzes sobre o retrato

de quem é para eliminar

dizendo que é preciso

fazer uma limpeza.

Há também quem decida 

e pratique o genocídio 

como se fosseu um ato de higienização 

do mundo.

A comunicação social dominada

é também expressão deste estado 

de coisas, trata uns como pessoas

muito importantes e outros

como se fossem insetos 

incómodos e insignificantes,

numa lógica de lavagem ao cérebro

para gáudio de uns quantos

gananciosos que se autointitulam

com o direito divino 

de serem os donos do mundo. 

Há sem dúvida 

higiene e limpeza a mais.

Por isso aqui fica 

um apelo à compreensão da sujidade

e ao lançamento de uma campanha

mundial para erguer uma estátua

de homenagem ao poema sujo.



Foto: desenho de Emília Nadal, 1976, exposto no Museu Soares dos Reis, Porto, 28 de julho de 2024








quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O vento

Aprendi no oitavo ano 

de escolaridade, em geografia,

que o vento 

é o movimento do ar

das altas para as baixas pressões.

O tempo passou

e décadas depois

aquela definição continua verdadeira,

mas o vento que oiço, que sinto 

e que não vejo, mostra-se

nos seus uivos de outra maneira,

há outra verdade no sentimento

do vento.

Pergunto-lhe se há esperança 

para o mundo ser mais verde

e ele nada me diz sobre a mudança.

Por isso vou andar por aí

à procura de outros ventos

que nos tragam outros tempos

que nos livrem das mordaças

e nos libertem das desgraças.