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domingo, 23 de junho de 2024

Sorte



Os trevos de quatro folhas

dão sorte.

Há quem acredite nisso

e não tem mal nenhum.

Os trevos de quatro folhas 

do quintal da casa onde moro

cativam-me de tal modo

que estou seguro de que lhes pertenço.

São verdes e mostram flores

de cinco pétalas cor de rosa

com estiletes amarelos.

Não creio, por maioria de razão,

que dão mesmo sorte.

Tenho-os na vista

quando estou ao pé deles,

e no pensamento 

quando vou para o trabalho.

Faço de conta que acredito 

(que dão sorte) 

para corresponder ao seu apelo

e justificar a nossa relação.

Sinto a estranheza 

de que vivo como se acreditasse

e isto faz-me bem ao coração.

Tenho mesmo sorte.

Tenho muita sorte.



 




terça-feira, 18 de junho de 2024

No fim do dia


Num sonho maduro,

em que há uma luz bruxuleante

a iluminar a alma e a dar

alegria ao coração,

irrompem as tuas mãos

na madrugada sem fronteiras,

desgranando romãs vivas

na mesa onde nos sentamos

para partilhar os despojos do dia. 

O tempo bravio não dá tréguas,

o vento suão desafia a resistência, 

e esta nossa força, 

mesmo cansada,

vence a secura agreste

que nos quis tisnar a pele.

Continuamos a regar as plantas,

a olhar para elas,

a vê-las a crescer e a sorrir 

assertivamente, na sua luta

que é também a nossa.

Por isso elas cuidam de nós 

e nós delas, sempre e sempre,

como é natural, até ao merecido

momento em que as mãos se dão.



terça-feira, 11 de junho de 2024

Três tempos

Primeiro tempo,
o passado, memória 
e pensamento 
dos sonhos e dos sonos, 
leves como plumas, 
profundos como a Fossa 
das Marianas 
no Oceano Pacífico.

Segundo tempo,
o presente, é o que sinto,
tão ténue, tão fino e fugidio,
talvez por isso 
me comporte como se fosse eterno
(não eu, mas o tempo a que pertenço).
É a inconsciência do nada,
a felicidade inteira como um fruto
fresco, maduro e doce nas tuas mãos,
nas minhas mãos, na tua boca,
nos lábios, na hora dos beijos.

Terceiro tempo,
o futuro, não existe
porque ainda não aconteceu,
é como uma ética, uma
intenção, um projeto, uma semente
a querer desabrochar,
é uma promessa que se há-de cumprir,
um lucro emocional que se desenrolará 
ao ritmo dos corações em sincronia.




domingo, 2 de junho de 2024

Amor, pão, água e abrigo

Olho em volta e vejo tantos objetos.

Que não uso, pouco usei, não usarei.

Tanto CD, tanto DVD, tanta cassete.

Tanta camisola, tanta meia, tanto casaco.

Tanto brinquedo, tanto plástico.

Tudo isto veio de algum lado. 

Tudo isto foi fabricado. 

Quem sabe com sangue, suor e lágrimas.

De certeza, com lucro fácil e abundante para alguns.

Com materiais arrancados às entranhas das montanhas, 

dos vales, das planícies, dos rios e dos mares,

delapidando a saúde da Terra Mãe.

Para quê tanta tralha?

Afinal só preciso de amor, pão, água e abrigo.

Tudo o mais é supérfluo.